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"O RAIO VERDE"
Rohmer prova arte do espaço
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Um telefonema, e os planos de
Delphine (Marie Rivière), a
protagonista de "O Raio Verde"
(1986), vão por água abaixo: a 15
dias do início das férias, ela já começa a se debater contra a certeza
de que está fadada à solidão.
Perambulando para fugir dessa
constatação, Delphine se depara,
relutante, com os signos que o diretor Eric Rohmer espalha: uma
carta de baralho, um estranho
cartaz, um encontro inesperado.
A errância em Rohmer foi sempre, desde sua estréia, "O Signo do
Leão" (1959), um meio para chegar à alma da personagem.
Tal é o "realismo espiritual" que
Rohmer defendia quando crítico,
nos anos 50, em seus autores prediletos. Esse conceito, em que ordem material e espiritual são indissociáveis, quando aplicado pelo próprio Rohmer, revela-se, em
boa medida, tributário das teorias
bazinianas. Uma prova a mais de
que, dos discípulos do crítico André Bazin, co-fundador da revista
"Cahiers du Cinéma" e grão-mestre da nouvelle vague, Rohmer foi
sempre o mais fiel.
Fidelidade que fez de Rohmer
um antípoda de Godard, o discípulo rebelado. Por provocação a
Bazin, Godard fez da montagem a
sua maior bandeira e da descontinuidade o seu grande achado. Por
respeito a Bazin, Rohmer minimizou o papel da montagem para
privilegiar o cinema como arte do
espaço. Evidente em "O Raio Verde", a obsessão de Rohmer por
atenuar o efeito das elipses temporais, marcando cada passagem
de tempo com um intertítulo,
ecoa dogmas de Bazin, para quem
as elipses, no cinema, deveriam
permanecer plásticas, mais espaciais do que temporais.
Rohmer sempre se mostrou,
desde a crítica, mais interessado
pela organização espacial dos filmes, mas, apesar de ter reservado
ao cinema um olhar de pintor,
nunca foi um esteta. Nos anos 50,
dizia que, quanto mais o cinema
evoluísse, mais sutil se tornaria a
apropriação que os cineastas fariam do espaço filmado. Seus filmes o provam: se se confundem,
invariavelmente, com a vida corrente, é porque Rohmer, como
Bazin, sempre achou que, diante
do mundo, o autor e seu estilo deveriam, até certo ponto, se anular.
Em "O Raio Verde", Delphine
se deixa transportar pelo mundo.
Rohmer faz a "crônica de um verão" (para lembrar o clássico de
Jean Rouch e Edgar Morin), realizando sua própria experiência de
cinema-verdade ao somar personagens reais e conversas mais ou
menos improvisadas. O fato de
partir do conto homônimo de Júlio Verne reforça a coerência de
um realizador que sempre buscou
uma relação indireta livre entre o
cinema e a literatura.
O Raio Verde
Le Rayon Vert
Produção: França, 1986
Direção: Eric Rohmer
Com: Marie Rivière, Amira Chemakhi,
Sylvie Richez
Quando: a partir de hoje no Top Cine 2
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