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São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 2003

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"O RAIO VERDE"

Rohmer prova arte do espaço

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Um telefonema, e os planos de Delphine (Marie Rivière), a protagonista de "O Raio Verde" (1986), vão por água abaixo: a 15 dias do início das férias, ela já começa a se debater contra a certeza de que está fadada à solidão.
Perambulando para fugir dessa constatação, Delphine se depara, relutante, com os signos que o diretor Eric Rohmer espalha: uma carta de baralho, um estranho cartaz, um encontro inesperado. A errância em Rohmer foi sempre, desde sua estréia, "O Signo do Leão" (1959), um meio para chegar à alma da personagem.
Tal é o "realismo espiritual" que Rohmer defendia quando crítico, nos anos 50, em seus autores prediletos. Esse conceito, em que ordem material e espiritual são indissociáveis, quando aplicado pelo próprio Rohmer, revela-se, em boa medida, tributário das teorias bazinianas. Uma prova a mais de que, dos discípulos do crítico André Bazin, co-fundador da revista "Cahiers du Cinéma" e grão-mestre da nouvelle vague, Rohmer foi sempre o mais fiel.
Fidelidade que fez de Rohmer um antípoda de Godard, o discípulo rebelado. Por provocação a Bazin, Godard fez da montagem a sua maior bandeira e da descontinuidade o seu grande achado. Por respeito a Bazin, Rohmer minimizou o papel da montagem para privilegiar o cinema como arte do espaço. Evidente em "O Raio Verde", a obsessão de Rohmer por atenuar o efeito das elipses temporais, marcando cada passagem de tempo com um intertítulo, ecoa dogmas de Bazin, para quem as elipses, no cinema, deveriam permanecer plásticas, mais espaciais do que temporais.
Rohmer sempre se mostrou, desde a crítica, mais interessado pela organização espacial dos filmes, mas, apesar de ter reservado ao cinema um olhar de pintor, nunca foi um esteta. Nos anos 50, dizia que, quanto mais o cinema evoluísse, mais sutil se tornaria a apropriação que os cineastas fariam do espaço filmado. Seus filmes o provam: se se confundem, invariavelmente, com a vida corrente, é porque Rohmer, como Bazin, sempre achou que, diante do mundo, o autor e seu estilo deveriam, até certo ponto, se anular.
Em "O Raio Verde", Delphine se deixa transportar pelo mundo. Rohmer faz a "crônica de um verão" (para lembrar o clássico de Jean Rouch e Edgar Morin), realizando sua própria experiência de cinema-verdade ao somar personagens reais e conversas mais ou menos improvisadas. O fato de partir do conto homônimo de Júlio Verne reforça a coerência de um realizador que sempre buscou uma relação indireta livre entre o cinema e a literatura.


O Raio Verde
Le Rayon Vert
    
Produção: França, 1986
Direção: Eric Rohmer
Com: Marie Rivière, Amira Chemakhi, Sylvie Richez
Quando: a partir de hoje no Top Cine 2



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