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CINEMA MOSTRA DE SÃO PAULO
Makavejev rima política e rebeldia com poesia
CARLOS REICHENBACH
especial para a Folha
Se algum visionário resolvesse
"organizar" (ops!) uma grande
mostra do cinema libertário
-leia-se arte anarquista e não sobre anarquismo-, Dusan Makavejev seria uma referência tão fundamental quanto Jean Vigo.
Iconoclasta, irreverente, inconformista, contestador: qualquer
adjetivo correlato é muito pouco
para explicar esse criador de exceção.
Original, no sentido mais subversivo do termo, o iugoslavo Dusan Makavejev é um cultor absoluto da arte livre. Seus filmes mais radicais são daqueles poucos capazes
de alterar visões de mundo e conceitos confortáveis. Se irritam,
aguçam preconceitos. Se fascinam,
mudam cabeças.
Descoberto na Semana da Crítica
do Festival de Cannes de 1966, Makavejev pode, sem nenhum exagero, ser considerado com Glauber
Rocha e Jean Marie Straub a safra
revolucionária de inventores fílmicos pós-Jean-Luc Godard. Como
os outros dois teve, em um determinado momento, de fugir de sua
terra natal para continuar a fazer
cinema.
Da fase iugoslava, seus três primeiros longas são deliciosamente
obrigatórios. "O Homem Não É
um Pássaro" (1966) já prenuncia
um estilo fragmentado e tonitruante, uma escala narrativa "piramidal", cujo eixo central da ficção imaginada só pode ser compreendido à luz das interferências
do real.
Leia-se aqui a confluência de sua
formação de psicólogo com a experiência de documentarista.
Quando indagado, na época, sobre
qual o cinema que mais lhe interessava, Makavejev respondeu, sem
ironia, que eram os jornais que lia
todas as manhãs.
"O Drama da Funcionária dos
Correios e Telégrafos" (1967), a
primeira obra-prima, é a consolidação desse estilo. A história de
amor de uma telegrafista por um
desconhecido se mistura de maneira aparentemente aleatória
com as conferências de um sexólogo e um criminologista.
Simultaneamente, o cadáver da
telegrafista é retirado de um rio pela polícia e autópsias de vários sentidos são realizadas na tela.
Enquanto a vigilância sanitária
busca combater o surto de ratos
que aterroriza a capital iugoslava, a
relação do casal de amantes apodrece, o sexólogo disseca as sociedades primitivas que adoravam o
falo e os rituais de rompimento do
hímen e o criminologista se engalfinha com a sua prolixidade.
Freud, Marx e Sade revisitados. Parece loucura, mas não é!
Makavejev subverte todos os teoremas ideológicos, todas as certezas dogmáticas. Após a tese e a antítese, a síncope. Tudo isso embalado ao som do canto de Maiakovski. Quer mais?
Em "Inocência Desprotegida"
(1968), Makavejev inova o conceito do cinema. Tendo como referência o primeiro drama de ficção
falado do cinema servo-croata, o
diretor se inspira diretamente em
Dziga Vertov para fazer seu filme
sobre o cineasta e acrobata Dragoljub Aleksic.
Filme dossiê, bricolagem, cinema em cacos, eis a exacerbação do
estilo fragmentário. Uma resposta
possível à arte-letrista ou o "situacionismo" avançado, antes de 68.
O filme de Makavejev se mistura
ao filme "Circo", de Aleksic, que se
mistura a filmes nazistas sobre as
primeiras vitórias da Wehrmacht
na Rússia, que se mistura a docu-atualidades iugoslavas, e assim por
diante. Quer mais?
²
Exílio
"W.R., -Os Mistérios do Organismo" (1971) foi o filme que decretou o exílio profissional de Makavejev. Redescobrindo Wilhelm
Reich para o mundo, o diretor parte de um documentário sobre o
mais notável dos marxistas freudianos para disparar sua metranca
giratória em todas as direções.
Assumindo definitivamente sua
ânsia libertária, Dusan faz uma desesperada elegia à vida. Contra os
dogmas, o tesão. Quer mais?
"Sweet Movie" (1973) é dinamite
puro em sua fúria iconoclástica.
No caos da falocracia, a inocência
desprotegida é arrastada pelos canais da desordem. Obra em processo, norte desestabelecido, improviso absoluto e anarquia iluminista a serviço da imaginação sem
limites. Duro de enxergar e doloroso de entender, "Sweet Movie" é
uma obra caótica, quase terminal.
É impossível ficar indiferente a sua
insolência.
Um fragmento para a história do
cinema: miss Mundo concluindo o
calvário de sua pureza na colônia
pseudo-anarquista do famigerado
austríaco Mürer. Perplexa e fragilizada, ela esfrega o pênis do primeiro homem que encontra em seu
rosto imaculado. Poucas vezes na
história do cinema uma imagem
angustiante atingiu com tanta desfaçatez as raias do sublime.
Os filmes seguintes de Makavejev parecem circunstanciais:
"Montenegro" (1981) faz apologia
da subversão familiar, mas, diante
dos petardos anteriores, é quase
convencional. "The Coca-Cola
Kid" (1985) é obra menor.
"Manifesto" (1987) é uma delícia,
com seus hilariantes conspiradores à mercê de uma heroína tarada.
"Os Gorilas se Lavam ao Meio-Dia" (1993) já se torna obrigatório
somente pelo nome.
É no autobiográfico "Buraco na
Alma" (1994), realizado como produção para a televisão, que reside a
maior curiosidade da retrospectiva Makavejev.
Talvez, finalmente, seja revelado
o segredo desse artista único, capaz de rimar política, rebeldia antitotalitária, antiviolência, libertação sexual e escatologia com poesia e invenção.
²
Carlos Reichenbach é cineasta e dirigiu "Alma
Corsária".
²
Filme: Gorilas se Lavam ao Meio-Dia
Quando: hoje, às 16h30, no Masp
Filme: The Coca-Cola Kid
Quando: hoje, às 16h, na sala 2 do MIS
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