São Paulo, segunda, 19 de outubro de 1998

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CINEMA MOSTRA DE SÃO PAULO
Makavejev rima política e rebeldia com poesia

CARLOS REICHENBACH
especial para a Folha

Se algum visionário resolvesse "organizar" (ops!) uma grande mostra do cinema libertário -leia-se arte anarquista e não sobre anarquismo-, Dusan Makavejev seria uma referência tão fundamental quanto Jean Vigo.
Iconoclasta, irreverente, inconformista, contestador: qualquer adjetivo correlato é muito pouco para explicar esse criador de exceção.
Original, no sentido mais subversivo do termo, o iugoslavo Dusan Makavejev é um cultor absoluto da arte livre. Seus filmes mais radicais são daqueles poucos capazes de alterar visões de mundo e conceitos confortáveis. Se irritam, aguçam preconceitos. Se fascinam, mudam cabeças.
Descoberto na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 1966, Makavejev pode, sem nenhum exagero, ser considerado com Glauber Rocha e Jean Marie Straub a safra revolucionária de inventores fílmicos pós-Jean-Luc Godard. Como os outros dois teve, em um determinado momento, de fugir de sua terra natal para continuar a fazer cinema.
Da fase iugoslava, seus três primeiros longas são deliciosamente obrigatórios. "O Homem Não É um Pássaro" (1966) já prenuncia um estilo fragmentado e tonitruante, uma escala narrativa "piramidal", cujo eixo central da ficção imaginada só pode ser compreendido à luz das interferências do real.
Leia-se aqui a confluência de sua formação de psicólogo com a experiência de documentarista. Quando indagado, na época, sobre qual o cinema que mais lhe interessava, Makavejev respondeu, sem ironia, que eram os jornais que lia todas as manhãs.
"O Drama da Funcionária dos Correios e Telégrafos" (1967), a primeira obra-prima, é a consolidação desse estilo. A história de amor de uma telegrafista por um desconhecido se mistura de maneira aparentemente aleatória com as conferências de um sexólogo e um criminologista.
Simultaneamente, o cadáver da telegrafista é retirado de um rio pela polícia e autópsias de vários sentidos são realizadas na tela.
Enquanto a vigilância sanitária busca combater o surto de ratos que aterroriza a capital iugoslava, a relação do casal de amantes apodrece, o sexólogo disseca as sociedades primitivas que adoravam o falo e os rituais de rompimento do hímen e o criminologista se engalfinha com a sua prolixidade. Freud, Marx e Sade revisitados. Parece loucura, mas não é!
Makavejev subverte todos os teoremas ideológicos, todas as certezas dogmáticas. Após a tese e a antítese, a síncope. Tudo isso embalado ao som do canto de Maiakovski. Quer mais?
Em "Inocência Desprotegida" (1968), Makavejev inova o conceito do cinema. Tendo como referência o primeiro drama de ficção falado do cinema servo-croata, o diretor se inspira diretamente em Dziga Vertov para fazer seu filme sobre o cineasta e acrobata Dragoljub Aleksic.
Filme dossiê, bricolagem, cinema em cacos, eis a exacerbação do estilo fragmentário. Uma resposta possível à arte-letrista ou o "situacionismo" avançado, antes de 68.
O filme de Makavejev se mistura ao filme "Circo", de Aleksic, que se mistura a filmes nazistas sobre as primeiras vitórias da Wehrmacht na Rússia, que se mistura a docu-atualidades iugoslavas, e assim por diante. Quer mais?
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Exílio "W.R., -Os Mistérios do Organismo" (1971) foi o filme que decretou o exílio profissional de Makavejev. Redescobrindo Wilhelm Reich para o mundo, o diretor parte de um documentário sobre o mais notável dos marxistas freudianos para disparar sua metranca giratória em todas as direções.
Assumindo definitivamente sua ânsia libertária, Dusan faz uma desesperada elegia à vida. Contra os dogmas, o tesão. Quer mais?
"Sweet Movie" (1973) é dinamite puro em sua fúria iconoclástica. No caos da falocracia, a inocência desprotegida é arrastada pelos canais da desordem. Obra em processo, norte desestabelecido, improviso absoluto e anarquia iluminista a serviço da imaginação sem limites. Duro de enxergar e doloroso de entender, "Sweet Movie" é uma obra caótica, quase terminal. É impossível ficar indiferente a sua insolência.
Um fragmento para a história do cinema: miss Mundo concluindo o calvário de sua pureza na colônia pseudo-anarquista do famigerado austríaco Mürer. Perplexa e fragilizada, ela esfrega o pênis do primeiro homem que encontra em seu rosto imaculado. Poucas vezes na história do cinema uma imagem angustiante atingiu com tanta desfaçatez as raias do sublime.
Os filmes seguintes de Makavejev parecem circunstanciais: "Montenegro" (1981) faz apologia da subversão familiar, mas, diante dos petardos anteriores, é quase convencional. "The Coca-Cola Kid" (1985) é obra menor.
"Manifesto" (1987) é uma delícia, com seus hilariantes conspiradores à mercê de uma heroína tarada. "Os Gorilas se Lavam ao Meio-Dia" (1993) já se torna obrigatório somente pelo nome.
É no autobiográfico "Buraco na Alma" (1994), realizado como produção para a televisão, que reside a maior curiosidade da retrospectiva Makavejev.
Talvez, finalmente, seja revelado o segredo desse artista único, capaz de rimar política, rebeldia antitotalitária, antiviolência, libertação sexual e escatologia com poesia e invenção.
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Carlos Reichenbach é cineasta e dirigiu "Alma Corsária".
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Filme: Gorilas se Lavam ao Meio-Dia Quando: hoje, às 16h30, no Masp Filme: The Coca-Cola Kid Quando: hoje, às 16h, na sala 2 do MIS


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