|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O homem da Atlantic
Aos 74, Ahmet Ertegun, fundador de uma das
gravadoras mais poderosas do mundo, conta
à Folha como ele cria astros há 50 anos
CARLOS CALADO
especial para a Folha
Só o fato de ter ajudado a transformar músicos como Ray Charles, Aretha Franklin ou Otis Redding em grandes astros bastaria
para fazer de Ahmet Ertegun, 74,
uma figura notável na história do
mercado fonográfico.
Porém 50 anos depois de fundar
a Atlantic Records -uma das gravadoras mais poderosas em atividade até hoje no cenário mundial-, Ertegun já virou quase
uma lenda. É só ver o encarte especial de cem páginas que a revista
"Billboard" dedicou a ele e seu selo, exatamente um mês atrás.
Filho de um diplomata turco,
Ertegun morou na França e na Inglaterra antes de se mudar com a
família para os EUA, em 1934. Fanático por jazz e blues, fundou a
Atlantic Records em outubro de
47, mas os primeiros discos só saíram no ano seguinte.
Seu estilo "bon vivant" ajudou a
aproximá-lo de muitos artistas e
músicos, incluindo brasileiros como o poeta Vinicius de Moraes, o
compositor Tom Jobim e o jazzófilo Jorge Guinle.
Acompanhando a mulher em
um evento social, Ertegun passou
dois dias em São Paulo, na última
semana, quando concedeu esta
entrevista exclusiva à Folha. Declarando-se fã da música e do futebol brasileiros, contou como conseguiu o dinheiro para investir na
Atlantic e como enfrentou o sucesso da Motown, sua maior concorrente, na década de 60.
Folha - Alguns críticos dizem que
o rock, o pop ou mesmo o rhythm
and blues dos anos 60 eram mais
criativos do que a música de hoje.
O sr. concorda com eles?
Ahmet Ertegun - Não. É muito
difícil fazer esse tipo de comparação, porque é necessário um certo
tempo para apreciar não só a música, mas qualquer outro tipo de
arte. Como na pintura, há sempre
alguém tentando criar algo diferente, algo novo, mas é difícil dizer
logo o que realmente vai durar.
Folha - Como o sr. se envolveu
com a música?
Ertegun - Minha mãe tocava
vários instrumentos e poderia até
ter sido uma grande estrela. Porém, na Turquia dos anos 20, as
garotas de boas famílias nem sonhavam em subir a um palco. Ela
adorava todos os tipos de música e
tínhamos muitos discos em casa.
Folha - Seu irmão Nesuhi também o influenciou?
Ertegun - Sem dúvida. Ele tinha
cinco anos a mais que eu e era um
garoto bastante precoce. Interessava-se muito por literatura e arte
moderna. Quando viveu em Paris,
cursando a Sorbonne, costumava
sair com artistas como André Breton e Darius Milhaud.
Também adorava jazz. Quando
moramos em Londres, levou-me
para assistir às big bands de Cab
Calloway e Duke Ellington. Eu tinha oito anos e fiquei fascinado
com as roupas e os metais que eles
tocavam. Virei fã do jazz e, ao mudar para os EUA, também comecei
a colecionar discos. Aos 17 anos,
eu e ele já tínhamos uns 25 mil.
Folha - Como teve a idéia de
abrir uma gravadora?
Ertegun - Eu tinha 22 anos
quando meu pai morreu e o resto
de minha família voltou para a
Turquia. Eu ainda estava cursando
a universidade e então decidi começar a trabalhar. Alguns amigos
de meu pai até me ofereceram empregos, mas logo percebi que o que
eu queria mesmo era fazer discos,
especialmente os voltados para o
público negro.
Folha - Seu primeiro selo já se
chamava Atlantic?
Ertegun - Não. Antes, produzi
algumas sessões de gravação, com
os selos Quality e Jubilee, mas nada aconteceu. Nosso maior problema era a falta de capital para
transformar o negócio em algo
mais sério. Eu tinha alguns amigos
ricos, mas nenhum deles quis
apostar em um jovem que jamais
trabalhara antes.
Lionel Hampton, grande amigo
meu, chegou a se interessar. Decidimos fundar a Hampton Records, mas a mulher dele vetou:
"Você está louco? Só porque frequenta botequins com esse garoto,
vai jogar dinheiro fora com uma
idéia tão idiota?" Finalmente, convenci meu dentista a investir no
negócio. Ele gostava de jogar e era
meio maluco.
Ele me deu US$ 10 mil. Os dentistas são conhecidos por investir
mal seu dinheiro (risos).
Folha - Como o sr. explica o sucesso inicial da Atlantic? Havia
uma fórmula musical?
Ertegun - Procurávamos gravar
cantores que despertassem emoções nas pessoas. O público que
compra discos de rhythm and
blues gosta de certas coisas, mas
não gosta de outras, como música
pop. Às vezes impúnhamos canções com harmonias de gospel,
que ajudam a música a soar mais
emocional. Nosso mercado principal era o do Sul do país, onde predominava o blues, mas, como não
podíamos bancar gravações com
artistas fora de Nova York, encontramos uma maneira de atingir
nosso público-alvo.
Folha - É verdade que o sr. contratou Ray Charles antes mesmo
de vê-lo tocar e cantar?
Ertegun - Sim. A mulher de
Herb Abramson tocou para mim a
gravação de "Baby Let Me Hold
Your Hand". Achei incrível: em
um momento soava como Charles
Brown, em outro como Nat King
Cole, além daquele piano delicioso, cheio de alma.
Fui até a agência dele, que era de
um amigo, e ele me disse que não
conseguia agendar shows de Ray
porque seus discos quase não vendiam. Acabei contratando-o por
US$ 3.000 dólares, sem vê-lo tocar.
Folha - Como o sr. encarou a concorrência da Motown?
Ertegun - Quando eles começaram, disse a mim mesmo: meu
Deus, essa música é fantástica, é
mais sofisticada do que a que estamos fazendo. Ela deixava para trás
os tempos duros da segregação racial. A Motown era a expressão do
futuro, embora a alma negra continuasse ali. Adoro a música da
Motown e reconheço que jamais
conseguiríamos fazer igual.
Folha - Foi sua a decisão de abrir
o repertório da Atlantic para o
rock, nos anos 60?
Ertegun - Sim. Afinal, o rock
and roll veio do blues e o que estávamos gravando até então também era uma extensão do blues. O
blues é o coração, é a fonte de tudo.
Até o jazz vem do blues.
Contratar grupos de rock como
Cream, Buffalo Springfield,
Crosby, Stills, Nash & Young ou
Emerson, Lake and Palmer foi essencial para o nosso crescimento.
Sem falar em Led Zeppelin, que até
hoje continua sendo a maior influência sobre os grupos jovens.
Folha - Qual foi seu primeiro contato com a música brasileira?
Ertegun - Foi pouco depois de
fundar a Atlantic, em 48 ou 49,
quando meu irmão Nesuhi fez
uma longa viagem de carro, dirigindo de Los Angeles até Nova
York. Acompanhando-o estava
Vinicius de Moraes, que então era
vice-cônsul do Brasil nos EUA.
Ficaram amigos por causa do interesse pelo jazz, aliás, a mesma razão pela qual nos tornamos amigos de Jorge Guinle, alguns anos
antes. Vinicius tinha que voltar ao
Brasil, mas antes passou uns dias
em Nova York. Eu o levei aos clubes do Harlem e ficamos amigos.
Era um grande poeta, mas ao mesmo tempo uma pessoa muito humilde. Mais tarde, também tornei-me amigo de Tom Jobim e Sérgio Mendes. Virei fã da música
brasileira, assim como do futebol.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|