São Paulo, sexta, 20 de fevereiro de 1998

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O homem da Atlantic

Aos 74, Ahmet Ertegun, fundador de uma das gravadoras mais poderosas do mundo, conta à Folha como ele cria astros há 50 anos

CARLOS CALADO
especial para a Folha

Só o fato de ter ajudado a transformar músicos como Ray Charles, Aretha Franklin ou Otis Redding em grandes astros bastaria para fazer de Ahmet Ertegun, 74, uma figura notável na história do mercado fonográfico.
Porém 50 anos depois de fundar a Atlantic Records -uma das gravadoras mais poderosas em atividade até hoje no cenário mundial-, Ertegun já virou quase uma lenda. É só ver o encarte especial de cem páginas que a revista "Billboard" dedicou a ele e seu selo, exatamente um mês atrás.
Filho de um diplomata turco, Ertegun morou na França e na Inglaterra antes de se mudar com a família para os EUA, em 1934. Fanático por jazz e blues, fundou a Atlantic Records em outubro de 47, mas os primeiros discos só saíram no ano seguinte.
Seu estilo "bon vivant" ajudou a aproximá-lo de muitos artistas e músicos, incluindo brasileiros como o poeta Vinicius de Moraes, o compositor Tom Jobim e o jazzófilo Jorge Guinle.
Acompanhando a mulher em um evento social, Ertegun passou dois dias em São Paulo, na última semana, quando concedeu esta entrevista exclusiva à Folha. Declarando-se fã da música e do futebol brasileiros, contou como conseguiu o dinheiro para investir na Atlantic e como enfrentou o sucesso da Motown, sua maior concorrente, na década de 60.

Folha - Alguns críticos dizem que o rock, o pop ou mesmo o rhythm and blues dos anos 60 eram mais criativos do que a música de hoje. O sr. concorda com eles?
Ahmet Ertegun -
Não. É muito difícil fazer esse tipo de comparação, porque é necessário um certo tempo para apreciar não só a música, mas qualquer outro tipo de arte. Como na pintura, há sempre alguém tentando criar algo diferente, algo novo, mas é difícil dizer logo o que realmente vai durar.
Folha - Como o sr. se envolveu com a música?
Ertegun -
Minha mãe tocava vários instrumentos e poderia até ter sido uma grande estrela. Porém, na Turquia dos anos 20, as garotas de boas famílias nem sonhavam em subir a um palco. Ela adorava todos os tipos de música e tínhamos muitos discos em casa.
Folha - Seu irmão Nesuhi também o influenciou?
Ertegun -
Sem dúvida. Ele tinha cinco anos a mais que eu e era um garoto bastante precoce. Interessava-se muito por literatura e arte moderna. Quando viveu em Paris, cursando a Sorbonne, costumava sair com artistas como André Breton e Darius Milhaud.
Também adorava jazz. Quando moramos em Londres, levou-me para assistir às big bands de Cab Calloway e Duke Ellington. Eu tinha oito anos e fiquei fascinado com as roupas e os metais que eles tocavam. Virei fã do jazz e, ao mudar para os EUA, também comecei a colecionar discos. Aos 17 anos, eu e ele já tínhamos uns 25 mil.
Folha - Como teve a idéia de abrir uma gravadora?
Ertegun -
Eu tinha 22 anos quando meu pai morreu e o resto de minha família voltou para a Turquia. Eu ainda estava cursando a universidade e então decidi começar a trabalhar. Alguns amigos de meu pai até me ofereceram empregos, mas logo percebi que o que eu queria mesmo era fazer discos, especialmente os voltados para o público negro.
Folha - Seu primeiro selo já se chamava Atlantic?
Ertegun -
Não. Antes, produzi algumas sessões de gravação, com os selos Quality e Jubilee, mas nada aconteceu. Nosso maior problema era a falta de capital para transformar o negócio em algo mais sério. Eu tinha alguns amigos ricos, mas nenhum deles quis apostar em um jovem que jamais trabalhara antes.
Lionel Hampton, grande amigo meu, chegou a se interessar. Decidimos fundar a Hampton Records, mas a mulher dele vetou: "Você está louco? Só porque frequenta botequins com esse garoto, vai jogar dinheiro fora com uma idéia tão idiota?" Finalmente, convenci meu dentista a investir no negócio. Ele gostava de jogar e era meio maluco.
Ele me deu US$ 10 mil. Os dentistas são conhecidos por investir mal seu dinheiro (risos).
Folha - Como o sr. explica o sucesso inicial da Atlantic? Havia uma fórmula musical?
Ertegun -
Procurávamos gravar cantores que despertassem emoções nas pessoas. O público que compra discos de rhythm and blues gosta de certas coisas, mas não gosta de outras, como música pop. Às vezes impúnhamos canções com harmonias de gospel, que ajudam a música a soar mais emocional. Nosso mercado principal era o do Sul do país, onde predominava o blues, mas, como não podíamos bancar gravações com artistas fora de Nova York, encontramos uma maneira de atingir nosso público-alvo.
Folha - É verdade que o sr. contratou Ray Charles antes mesmo de vê-lo tocar e cantar?
Ertegun -
Sim. A mulher de Herb Abramson tocou para mim a gravação de "Baby Let Me Hold Your Hand". Achei incrível: em um momento soava como Charles Brown, em outro como Nat King Cole, além daquele piano delicioso, cheio de alma.
Fui até a agência dele, que era de um amigo, e ele me disse que não conseguia agendar shows de Ray porque seus discos quase não vendiam. Acabei contratando-o por US$ 3.000 dólares, sem vê-lo tocar.
Folha - Como o sr. encarou a concorrência da Motown?
Ertegun -
Quando eles começaram, disse a mim mesmo: meu Deus, essa música é fantástica, é mais sofisticada do que a que estamos fazendo. Ela deixava para trás os tempos duros da segregação racial. A Motown era a expressão do futuro, embora a alma negra continuasse ali. Adoro a música da Motown e reconheço que jamais conseguiríamos fazer igual.
Folha - Foi sua a decisão de abrir o repertório da Atlantic para o rock, nos anos 60?
Ertegun -
Sim. Afinal, o rock and roll veio do blues e o que estávamos gravando até então também era uma extensão do blues. O blues é o coração, é a fonte de tudo. Até o jazz vem do blues.
Contratar grupos de rock como Cream, Buffalo Springfield, Crosby, Stills, Nash & Young ou Emerson, Lake and Palmer foi essencial para o nosso crescimento. Sem falar em Led Zeppelin, que até hoje continua sendo a maior influência sobre os grupos jovens.
Folha - Qual foi seu primeiro contato com a música brasileira?
Ertegun -
Foi pouco depois de fundar a Atlantic, em 48 ou 49, quando meu irmão Nesuhi fez uma longa viagem de carro, dirigindo de Los Angeles até Nova York. Acompanhando-o estava Vinicius de Moraes, que então era vice-cônsul do Brasil nos EUA.
Ficaram amigos por causa do interesse pelo jazz, aliás, a mesma razão pela qual nos tornamos amigos de Jorge Guinle, alguns anos antes. Vinicius tinha que voltar ao Brasil, mas antes passou uns dias em Nova York. Eu o levei aos clubes do Harlem e ficamos amigos. Era um grande poeta, mas ao mesmo tempo uma pessoa muito humilde. Mais tarde, também tornei-me amigo de Tom Jobim e Sérgio Mendes. Virei fã da música brasileira, assim como do futebol.



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