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GASTRONOMIA
Esperemos com calma o que vem por aí
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Ano 2003. Na nossa viagem
alimentar, com a partida nos
anos 60, passamos por mares
nunca dantes navegados e chegamos muito além da Taprobana.
Nada que se come nos é estranho,
no país do Fome Zero (resistir a
este slogan, quem há de?). Mas,
lembrem-se sempre, esta página é
de gastronomia, fala de comida.
Uma crônica não bastaria para
lembrar as três décadas. Aconteceram todas. Falou-se de tudo.
Chegara a hora de comer com
prazer. Em 1983, foi publicado o
manual yuppie (young urban
professionals) nos EUA, os novos
ricos... Foram os yuppies que pagaram a conta da mania contemporânea. E dentre eles apareceu o
novo gourmet, o radical da comida, o maníaco, o foodie, expressão
cunhada pelos ingleses. Pelos ingleses, pois, sim, Paul Levy e Ann
Barr. Escreveram um livrinho
também, um manual, à moda dos
yuppies. O que se podia e se devia
fazer e o que era proibido no
mundo da comida.
O clima político era favorável, a
economia quente. Os supermercados estavam vendendo tudo
para o trivial de todo dia, era preciso que alguém inventasse novos
sabores para que se criasse uma
moda a ser seguida por todos. Os
empregados domésticos haviam
desaparecido, como tornar glamourosa a nova obrigação?
Em 1976, Tom Wolfe batizou
aquela geração de "Me Generation", e quando não havia mais
nenhum setor do Eu para ser examinado, quando a Aids e o herpes
faziam perigoso o contato sexual,
as drogas matavam e incapacitavam, a última moda na roupa ficou fora de moda, viajar atrás de
quê? O paladar foi a resposta.
O primeiro casal, Adão e Eva
dos foodies, comia em restaurantes, provavam do prato um do outro e comentavam suas impressões sem se importar com o mundo ao redor. Logo haveria milhões
de pessoas como eles, milhões
concentrados na próxima refeição sem um bocadinho de culpa.
A venda de livros de cozinha subiu aos céus, os professores de culinárias tornaram-se astros de TV,
as agências gastronômicas inventaram excursões pelo mundo das
comidas, pelas regiões vinícolas, e
muitos guias começaram a balançar o velho "Michelin".
O que seria necessário para fundamentar uma cultura de gulosos? Lojas de alta classe, produto
fresco com bom transporte, gente
com dinheiro para comer fora e
para manter todo o sistema dos
restaurantes.
Cortaram-se cabeças de antigas
comidas. Na casa de um dos novos gulosos nunca mais se viu um
estrogonofe, um pernil, uma
maionese, uma empada, uma coxinha de galinha frita, um coquetel meia de seda, queijo com cerejas em calda, doce de pêssego em
lata. Eram pecados capitais.
Os jornais perceberam os novos
interesses e lançaram suplementos coloridos sobre comida. O
"Sunday Times" em 1962, o "Observer" em 1964 e o "New York
Sunday Times" em 1975. Aqui no
Brasil ainda temos que pensar a
nossa história, reflexo da deles .
E de repente, quando o gosto da
comida tomara conta das massas
surge uma novidade, onde, onde?
Na França, na terra dos cozinheiros momentaneamente estuporados pela Segunda Guerra.
Bom, todo mundo sabe da revolução, que fez o prato grande e a
comida pouca. Brincadeira sem
graça pois a "nouvelle cuisine" foi
mesmo uma transformação que
deixou bons costumes e alguns
maus vestígios. Que teve seu lado
bom e seu lado ruim. Foi daí, também, todos se lembram, que começaram a aparecer os chatos do
azeite, os chatos do vinagre, os
chatos do sal, os chatos orgânicos
e, por Deus, os utensílios! Não havia mala que chegasse para os
utensílios de todo lado do mundo,
cada comida a ser feita na panela
certa, mexida com a colher certa,
servida na travessa certa.
Macarrão virou pasta e se faltasse luz, ninguém poderia cozinhar
sem seus moedores, processadores, lavadores de verduras, espremedores de alho, sorveteiras, cafeteiras.
E os restaurantes se encheram
de uma nova classe. Os novos sabiam se comportar nos restaurantes. Telefonavam antes, queriam
toalhas muito limpas, não se importavam muito com a decoração
do lugar, mas com pratos, talheres
e copos, e recusavam-se a andar
em grupos de mais de seis pessoas.
O aperitivo antes da refeição
acabou, só restou um martini;
água só engarrafada; crianças frequentaram todos os restaurantes
de Paris, é de pequeno que se torce o pepino; o pão tinha que ser
maravilhoso; a manteiga, sem sal;
o menu, estudado com afinco; e o
vinho melhor é o da região.
As revistas gastropornôs tomaram conta do mercado, os críticos
de restaurantes eram reis com reinado e com coroa.
Isso foi só para refrescar a memória. Sem se esquecer do salmão
marinado com dill e o sushi que se
tornaram nosso trivial.
Sente-se um cansaço no ar, é
preciso outra revolução ou um
descanso não remunerado. Já sabemos tudo o que precisávamos
saber. Por algum tempo. Agora é
tatear com cuidado para ver o que
vem vindo. Se formos abordados
pela "New Yorker" para uma artigo supimpa de muitas páginas,
impressionados com nossa cultura alimentar, cuidado Terceiro
Mundo, que tem todas as chances
de ser fria! Esperemos.
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