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São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2003

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GASTRONOMIA

Esperemos com calma o que vem por aí

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Ano 2003. Na nossa viagem alimentar, com a partida nos anos 60, passamos por mares nunca dantes navegados e chegamos muito além da Taprobana. Nada que se come nos é estranho, no país do Fome Zero (resistir a este slogan, quem há de?). Mas, lembrem-se sempre, esta página é de gastronomia, fala de comida.
Uma crônica não bastaria para lembrar as três décadas. Aconteceram todas. Falou-se de tudo. Chegara a hora de comer com prazer. Em 1983, foi publicado o manual yuppie (young urban professionals) nos EUA, os novos ricos... Foram os yuppies que pagaram a conta da mania contemporânea. E dentre eles apareceu o novo gourmet, o radical da comida, o maníaco, o foodie, expressão cunhada pelos ingleses. Pelos ingleses, pois, sim, Paul Levy e Ann Barr. Escreveram um livrinho também, um manual, à moda dos yuppies. O que se podia e se devia fazer e o que era proibido no mundo da comida.
O clima político era favorável, a economia quente. Os supermercados estavam vendendo tudo para o trivial de todo dia, era preciso que alguém inventasse novos sabores para que se criasse uma moda a ser seguida por todos. Os empregados domésticos haviam desaparecido, como tornar glamourosa a nova obrigação?
Em 1976, Tom Wolfe batizou aquela geração de "Me Generation", e quando não havia mais nenhum setor do Eu para ser examinado, quando a Aids e o herpes faziam perigoso o contato sexual, as drogas matavam e incapacitavam, a última moda na roupa ficou fora de moda, viajar atrás de quê? O paladar foi a resposta.
O primeiro casal, Adão e Eva dos foodies, comia em restaurantes, provavam do prato um do outro e comentavam suas impressões sem se importar com o mundo ao redor. Logo haveria milhões de pessoas como eles, milhões concentrados na próxima refeição sem um bocadinho de culpa.
A venda de livros de cozinha subiu aos céus, os professores de culinárias tornaram-se astros de TV, as agências gastronômicas inventaram excursões pelo mundo das comidas, pelas regiões vinícolas, e muitos guias começaram a balançar o velho "Michelin".
O que seria necessário para fundamentar uma cultura de gulosos? Lojas de alta classe, produto fresco com bom transporte, gente com dinheiro para comer fora e para manter todo o sistema dos restaurantes.
Cortaram-se cabeças de antigas comidas. Na casa de um dos novos gulosos nunca mais se viu um estrogonofe, um pernil, uma maionese, uma empada, uma coxinha de galinha frita, um coquetel meia de seda, queijo com cerejas em calda, doce de pêssego em lata. Eram pecados capitais.
Os jornais perceberam os novos interesses e lançaram suplementos coloridos sobre comida. O "Sunday Times" em 1962, o "Observer" em 1964 e o "New York Sunday Times" em 1975. Aqui no Brasil ainda temos que pensar a nossa história, reflexo da deles .
E de repente, quando o gosto da comida tomara conta das massas surge uma novidade, onde, onde? Na França, na terra dos cozinheiros momentaneamente estuporados pela Segunda Guerra.
Bom, todo mundo sabe da revolução, que fez o prato grande e a comida pouca. Brincadeira sem graça pois a "nouvelle cuisine" foi mesmo uma transformação que deixou bons costumes e alguns maus vestígios. Que teve seu lado bom e seu lado ruim. Foi daí, também, todos se lembram, que começaram a aparecer os chatos do azeite, os chatos do vinagre, os chatos do sal, os chatos orgânicos e, por Deus, os utensílios! Não havia mala que chegasse para os utensílios de todo lado do mundo, cada comida a ser feita na panela certa, mexida com a colher certa, servida na travessa certa.
Macarrão virou pasta e se faltasse luz, ninguém poderia cozinhar sem seus moedores, processadores, lavadores de verduras, espremedores de alho, sorveteiras, cafeteiras.
E os restaurantes se encheram de uma nova classe. Os novos sabiam se comportar nos restaurantes. Telefonavam antes, queriam toalhas muito limpas, não se importavam muito com a decoração do lugar, mas com pratos, talheres e copos, e recusavam-se a andar em grupos de mais de seis pessoas.
O aperitivo antes da refeição acabou, só restou um martini; água só engarrafada; crianças frequentaram todos os restaurantes de Paris, é de pequeno que se torce o pepino; o pão tinha que ser maravilhoso; a manteiga, sem sal; o menu, estudado com afinco; e o vinho melhor é o da região.
As revistas gastropornôs tomaram conta do mercado, os críticos de restaurantes eram reis com reinado e com coroa.
Isso foi só para refrescar a memória. Sem se esquecer do salmão marinado com dill e o sushi que se tornaram nosso trivial.
Sente-se um cansaço no ar, é preciso outra revolução ou um descanso não remunerado. Já sabemos tudo o que precisávamos saber. Por algum tempo. Agora é tatear com cuidado para ver o que vem vindo. Se formos abordados pela "New Yorker" para uma artigo supimpa de muitas páginas, impressionados com nossa cultura alimentar, cuidado Terceiro Mundo, que tem todas as chances de ser fria! Esperemos.


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