São Paulo, sábado, 20 de maio de 2006

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CRÍTICA

Com ironia, autor exibe crepúsculo dos sentimentos e angústia moral

DA REPORTAGEM LOCAL

"Entre os chineses, o limão é o símbolo da morte", diz Julian Barnes em "O Silêncio", o conto final de "Um Toque de Limão", que reproduz a frustração com o tempo e as reticências com a vida do compositor Sibelius (1865-1957). O título do livro de Julian Barnes expressa bem sua idéia. Em todas as páginas há acidez e amargura, ainda que estejam cheias de humor.
"O Silêncio" é o melhor conto do livro, seguido de "O Reviver", que tem como personagem o russo Ivan Turguêniev (1818-1883). Este se apaixona por uma jovem atriz e vive o dilema de assumir o amor contra si e apesar dos outros. Uma viagem de trem é o momento-chave poético que resume seu conflito interior. E uma festa com seu amigo e rival Tolstói é a ocasião para Julian Barnes confrontar frivolidade com ascetismo, contrastar união e celebração com solipsismo.
Em "O Cercado das Frutas", uma mulher de 80 anos se separa do marido de 81, depois que este arruma uma amante de 65. Chamado a intervir, o filho interpela a estranha e descobre que o pai, na verdade, era uma vítima silenciosa de violência doméstica.
Em "Vigilância", um habitué de concertos -a música é um de seus últimos prazeres concretos- passa a desenvolver fantasias de vingança contra espectadores que ousem atrapalhar o andamento das peças ao tossir. Ou simplesmente por carregarem mulheres mais jovens e sensuais aos auditórios, trocando carícias entre as notas, evidentemente afrontando todos os demais -bem, pelo menos ele.
Angústia, morbidez, impotência, perda de memória, rabugice, egoísmo, ternura, declínio e fim. O crepúsculo dos sentimentos, o desfile dos males e suas derivações que se agravam com a idade marcam com acidez os 11 contos.
Ainda que não tenha a riqueza de sua melhor obra, "O Papagaio de Flaubert", "Um Toque de Limão" reafirma o talento e a versatilidade de Barnes, autor que integra -com Ian McEwan e Martin Amis- o trio que renovou a prosa britânica, colocando-a em primeiro plano no cenário mundial.
Barnes escreve com inteligência e virtuosismo. Sofisticado, se apropria dos clichês, impregnando-os com ironia. Mas não é condescendente, não se furta à dureza crua do declínio físico, da decomposição orgânica e das fraquezas morais. Na verdade, cria um auto-de-fé das emoções humanas, confrontadas com o fim inclemente que se aproxima em silêncio. É uma visão otimista? (MS)


Um Toque de Limão
    
Autor: Julian Barnes Tradução: Ana Deiró Editora: Rocco Quanto: 272 págs. (preço a definir)



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