São Paulo, sábado, 20 de junho de 2009

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Quem é o dono da história?

Sai versão original de contos de Raymond Carver, lançados em 81 como obras-primas do minimalismo após cortes de editor

Bob Aldeman/Corbis
O escrito norte-americano Raymond Carver em 1984

KÊNYA ZANATTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

Histórias de livros perdidos, imaginários ou proibidos fascinam leitores e escritores -basta pensar nos contos de Borges. Agora, o público brasileiro está entre os primeiros a ter acesso a um desses livros-fantasma, que "assombra" o mundo literário há mais de duas décadas.
Trata-se de "Iniciantes", a versão não-editada do volume de contos "What We Talk about When We Talk about Love" (do que estamos falando quando falamos de amor), do americano Raymond Carver (1938-1988), publicado em 1981 e considerado pelos críticos uma obra-prima do minimalismo.
Os textos permitem avaliar o papel do controverso editor Gordon Lish na gênese da obra. Segundo rumores que circulam há anos, alimentados por declarações do próprio Lish, o editor teria "inventado" Carver.
Os 17 contos do livro foram profundamente modificados na edição. Lish cortou mais da metade do texto, trocou títulos e nomes de personagens, acrescentou frases e alterou alguns finais, acentuando o tom pessimista com que Carver descrevia a classe média baixa californiana e definindo o estilo frio e elíptico, quase abstrato, que caracterizaria a corrente literária.
Carver, que morreu sete anos após a publicação, não aceitou passivamente o que qualificou como "amputação" do livro. Recém-saído de um longo período de alcoolismo e precariedade financeira, ele começava a ganhar reconhecimento como escritor, graças ao sucesso de crítica de seu primeiro volume de contos, "Fique Quieta por Favor" (1976).
Em uma carta de julho de 1980, o autor implorou ao editor que suspendesse a publicação. Com um contrato assinado por Carver em mãos, Lish não deu ouvidos às súplicas.
"Ray estava diante de um dilema insolúvel. O livro foi um sucesso, ele não podia repudiá-lo. É claro que seria também embaraçoso corrigir e ter de explicar", diz a poeta Tess Gallagher, 65, viúva de Carver, em entrevista à Folha por telefone de sua casa em Port Angeles, em Washington. "Ray me disse que iria recuperar o livro original. Ele não pôde fazê-lo, mas mantive sua promessa."
O texto de "Iniciantes" foi restaurado pelos pesquisadores William L. Stull e Maureen P. Carroll a partir dos manuscritos conservados nos arquivos vendidos por Lish à Universidade de Indiana, em 1991.
Quando decidiu publicar o livro, Gallagher se deparou com a resistência por parte da editora Alfred A. Knopf, que detém os direitos de "What We Talk about When We Talk about Love". "Iniciantes" sairá nos EUA só em setembro pela Library of America, uma editora sem fins lucrativos.
"O próprio Ray selecionou os contos que mais apreciava, nas versões que preferia, para "Where I'm Calling From" [de onde estou falando, último livro publicado em vida]. Não acredito que ele quisesse que esse livro fosse publicado", disse à Folha por e-mail Gary Fisketjon, o último editor a trabalhar com Carver e vice-presidente da Knopf.
Segundo Tess Gallagher, a situação era mais complexa: "Ray já estava doente naquela época e não tinha o manuscrito original, assim não era possível restaurá-lo completamente. No tempo que teve até 1988, ele se concentrou mais em escrever novas histórias do que em voltar atrás e corrigir".

"Energia narrativa"
Professor de literatura na Universidade La Sapienza e tradutor de Carver na Itália, onde "Iniciantes" foi lançado em março, Riccardo Duranti diz acreditar que o objetivo de Gordon Lish era lançar o minimalismo no mercado.
"Não há dúvida de que em certos aspectos o tratamento de Lish melhorou algumas características estilísticas, mas somente porque a energia narrativa dos originais o permitia. Por outro lado, em certos contos, é evidente que o achatamento de alguns personagens e dimensões psicológicas empobreceu a força do original", diz.
Para Duranti, "Iniciantes" já mostra uma prosa mais expansiva e humanista, que os críticos acreditavam ser característica das obras maduras de Raymond Carver, a partir de "Catedral" (1983).


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