São Paulo, sábado, 20 de agosto de 2005

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ARTIGO

Edição refaz calvário de poeta russa

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No inverno de 1945, o filósofo Isaiah Berlin viajou de Moscou para Leningrado. A guerra terminara pouco antes e Berlin encontrou uma cidade devastada. Mas essa viagem à São Petersburgo da sua infância não valeu apenas como retrato da destruição e da barbárie. Ao entrar numa livraria local, Berlin inquiriu sobre o destino de escritores vários, que ele julgava mortos e enterrados. Como Anna Akhmatova, uma das figuras mais marcantes da poesia russa pré-revolucionária.
Para espanto de Berlin, Akhmatova não estava morta nem enterrada. Vivia perto, bem perto dali. E, se Berlin quisesse, seria possível conhecê-la naquela mesma tarde. O encontro foi rapidamente providenciado. Pela descrição que Berlin nos legou, Akhmatova surgiu como "uma rainha trágica", no seu porte majestático. E ainda era possível divisar, no rosto envelhecido, a espantosa beleza de uma das mais sublimes mulheres daquela cidade. "Um anjo negro, tocado por Deus", nas palavras felizes do muito infeliz Osip Mandel'shtam.
Elaine Feinstein, biógrafa de Pushkin, revisita essa "rainha trágica" numa das biografias mais aguardadas do ano: "Anna of All the Russias: The Life of Anna Akhmatova" (Anna de todas as Rússias: a vida de Anna Akhmatova). É o retrato competente de um calvário poético e pessoal: de como alguém conservou a alma e a dignidade perante um mundo invulgarmente brutal.
Anna nasceu em 1889, perto de Odessa, na Ucrânia. Por imposição do pai, que não tolerava os seus exercícios poéticos, acabaria por abandonar o nome de família ("Gorenko"), escolhendo "Akhmatova", nome de princesa tártara sua antepassada. Nas palavras de Joseph Brodsky, seu discípulo e confidente nos anos finais, a escolha do nome foi o seu primeiro poema.
Akhmatova começou por receber a influência dos simbolistas, sobretudo de Aleksandr Blok. Mas cedo se revoltaria contra essa influência: a partir de 1913, e juntamente com Mandel'shtam e o primeiro marido, Nikolai Gumilev, participa no movimento acmeísta, que pretendia romper, quer com o misticismo simbolista de Blok, quer com o futurismo de Maiakóvski, procurando uma poesia capaz de transmitir a experiência pessoal através de uma linguagem clara e rigorosa.
Mas a poesia de Akhmatova é indissociável do sofrimento russo e o ano de 1917 é, pelos piores motivos, momento marcante da sua biografia poética. Muitos escritores celebraram a revolução bolchevique de outubro como momento de libertação. "Um milagre", dizia Blok; "um segundo Bonaparte", afirmava Marina Tsvetaeva, sem saber que Lênin seria o início da sua destruição pessoal. Akhmatova entendeu que 1917 inaugurava uma via dolorosa para a Rússia. Não apenas pela pobreza material e moral, que transformaria o quotidiano do povo russo num inferno secular. Mas pelas tragédias pessoais que Akhmatova enfrentaria já sob Stálin: as mortes de Gumilev e Mandel'shtam às mãos do regime; os 15 anos de Sibéria para seu filho Lev. E a proscrição da sua poesia, considerada "pessoal" e "decadente" (leia-se: "burguesa" e "reacionária") pelos críticos oficiais, sobretudo pelo sinistro Andrei Zhdanov.
A tudo isto Anna Akhmatova respondeu, ficando. Na verdade, Akhmatova sempre se recusou a deixar a Rússia. Não por desprezo ideológico face ao Ocidente (como em Gogol). E muito menos por uma qualquer inadequação às principais capitais da Europa (como em Belinski): em 1911, Akhmatova vivera em Paris, e desses anos Modigliani deixaria pinturas célebres. Akhmatova ficou para testemunhar: para que da sua "boca extenuada" pudesse ainda gritar "um povo de 100 milhões". As palavras pertencem a "Réquiem", escrito entre 1935 e 1940, obra monumental sobre um tempo feroz. "Era no tempo em que só um morto,/ Contente por estar em paz, sorria."
Anna Akhmatova sobreviveu a esse tempo. Não apenas fisicamente, o que já não deixa de ser uma proeza. Mas moral e poeticamente. Nas palavras de Mandel'shtam, Akhmatova conseguiu trazer a complexidade e a riqueza do romance russo do século 19 para a lírica do século 20. Fato. Mas conseguiu mais: como exemplo de resistência, a "Anna de Todas as Rússias" legou ao seu povo uma impossibilidade de esquecimento. Em 1966, ano da sua morte, esse povo saiu à rua e, em silêncio, agradeceu.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online.
E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Anna of All the Russias: The Life of Anna Akhmatova

Autor: Elaine Feinstein Editora: Weidenfeld & Nicolson Quanto: 20 libras (R$ 85); 322 págs. Onde encontrar: www.amazon.co.uk


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