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ARTIGO
Edição refaz calvário de poeta russa
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
No inverno de 1945, o filósofo
Isaiah Berlin viajou de Moscou para Leningrado. A guerra
terminara pouco antes e Berlin
encontrou uma cidade devastada.
Mas essa viagem à São Petersburgo da sua infância não valeu apenas como retrato da destruição e
da barbárie. Ao entrar numa livraria local, Berlin inquiriu sobre
o destino de escritores vários, que
ele julgava mortos e enterrados.
Como Anna Akhmatova, uma
das figuras mais marcantes da
poesia russa pré-revolucionária.
Para espanto de Berlin, Akhmatova não estava morta nem enterrada. Vivia perto, bem perto dali.
E, se Berlin quisesse, seria possível
conhecê-la naquela mesma tarde.
O encontro foi rapidamente providenciado. Pela descrição que
Berlin nos legou, Akhmatova surgiu como "uma rainha trágica",
no seu porte majestático. E ainda
era possível divisar, no rosto envelhecido, a espantosa beleza de
uma das mais sublimes mulheres
daquela cidade. "Um anjo negro,
tocado por Deus", nas palavras felizes do muito infeliz Osip Mandel'shtam.
Elaine Feinstein, biógrafa de
Pushkin, revisita essa "rainha trágica" numa das biografias mais
aguardadas do ano: "Anna of All
the Russias: The Life of Anna
Akhmatova" (Anna de todas as
Rússias: a vida de Anna Akhmatova). É o retrato competente de
um calvário poético e pessoal: de
como alguém conservou a alma e
a dignidade perante um mundo
invulgarmente brutal.
Anna nasceu em 1889, perto de
Odessa, na Ucrânia. Por imposição do pai, que não tolerava os
seus exercícios poéticos, acabaria
por abandonar o nome de família
("Gorenko"), escolhendo "Akhmatova", nome de princesa tártara sua antepassada. Nas palavras
de Joseph Brodsky, seu discípulo
e confidente nos anos finais, a escolha do nome foi o seu primeiro
poema.
Akhmatova começou por receber a influência dos simbolistas,
sobretudo de Aleksandr Blok.
Mas cedo se revoltaria contra essa
influência: a partir de 1913, e juntamente com Mandel'shtam e o
primeiro marido, Nikolai Gumilev, participa no movimento acmeísta, que pretendia romper,
quer com o misticismo simbolista
de Blok, quer com o futurismo de
Maiakóvski, procurando uma
poesia capaz de transmitir a experiência pessoal através de uma linguagem clara e rigorosa.
Mas a poesia de Akhmatova é
indissociável do sofrimento russo
e o ano de 1917 é, pelos piores motivos, momento marcante da sua
biografia poética. Muitos escritores celebraram a revolução bolchevique de outubro como momento de libertação. "Um milagre", dizia Blok; "um segundo Bonaparte", afirmava Marina Tsvetaeva, sem saber que Lênin seria o
início da sua destruição pessoal.
Akhmatova entendeu que 1917
inaugurava uma via dolorosa para a Rússia. Não apenas pela pobreza material e moral, que transformaria o quotidiano do povo
russo num inferno secular. Mas
pelas tragédias pessoais que Akhmatova enfrentaria já sob Stálin:
as mortes de Gumilev e Mandel'shtam às mãos do regime; os
15 anos de Sibéria para seu filho
Lev. E a proscrição da sua poesia,
considerada "pessoal" e "decadente" (leia-se: "burguesa" e "reacionária") pelos críticos oficiais,
sobretudo pelo sinistro Andrei
Zhdanov.
A tudo isto Anna Akhmatova
respondeu, ficando. Na verdade,
Akhmatova sempre se recusou a
deixar a Rússia. Não por desprezo
ideológico face ao Ocidente (como em Gogol). E muito menos
por uma qualquer inadequação às
principais capitais da Europa (como em Belinski): em 1911, Akhmatova vivera em Paris, e desses
anos Modigliani deixaria pinturas
célebres. Akhmatova ficou para
testemunhar: para que da sua
"boca extenuada" pudesse ainda
gritar "um povo de 100 milhões".
As palavras pertencem a "Réquiem", escrito entre 1935 e 1940,
obra monumental sobre um tempo feroz. "Era no tempo em que
só um morto,/ Contente por estar
em paz, sorria."
Anna Akhmatova sobreviveu a
esse tempo. Não apenas fisicamente, o que já não deixa de ser
uma proeza. Mas moral e poeticamente. Nas palavras de Mandel'shtam, Akhmatova conseguiu
trazer a complexidade e a riqueza
do romance russo do século 19
para a lírica do século 20. Fato.
Mas conseguiu mais: como exemplo de resistência, a "Anna de Todas as Rússias" legou ao seu povo
uma impossibilidade de esquecimento. Em 1966, ano da sua morte, esse povo saiu à rua e, em silêncio, agradeceu.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online.
E-mail:
jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
Anna of All the Russias: The Life
of Anna Akhmatova
Autor: Elaine Feinstein
Editora: Weidenfeld & Nicolson
Quanto: 20 libras (R$ 85); 322 págs.
Onde encontrar: www.amazon.co.uk
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