São Paulo, segunda-feira, 20 de agosto de 2007

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GUILHERME WISNIK

Mundo showroom


Falar em fetichização da vida privada é muito pouco. O que há é uma exacerbação in extremis da idéia de posse

HOUVE UM tempo em que as novidades da vida doméstica vinham associadas a nomes franceses: desde os utensílios de casa, como os abat-jours, até os novos ambientes, como as suítes, além de empregados da família, como os chauffers. Nas últimas décadas, como sabemos, esse imaginário foi soterrado pelo mundo do closet, do lobby, do living, do valet, do flat, do loft, do delivery, do fitness, do lounge, do home theater etc. Na verdade, a invasão da língua inglesa veio acompanhada de uma profusão de coisas e serviços. No caso, não exatamente de objetos de consumo (que você possa comprar em uma loja), mas de ambientes (no caso da arquitetura) e atividades que vieram preenchendo a vida diária com novas necessidades, saturando-a.
Essa saturação, por sua vez, é segmentadora. Isso é evidente no campo dos empreendimentos imobiliários comerciais, dominados cada vez mais pela febre do exclusivo, do personalizado e do privativo. Por exemplo, uma das atuais ofertas dos novos conjuntos de apartamentos é o "dog walk": percurso exclusivo para passeios com cachorros nos jardins internos. Outro "conceito" que prolifera no mercado é, curiosamente, um híbrido inglês-francês: o "home boutique". Trata-se de um residencial de alto padrão, mas com apartamentos pequenos, e que oferece serviços como adegas climatizadas com sommeliers próprios e personal trainers.
Mas a mais recente manifestação desse estado de coisas é um lançamento que tem aparecido maciçamente nas páginas de propaganda deste jornal: o Central Park Prime, no bairro do Tatuapé. O seu "conceito" é o mesmo de inúmeros outros conjuntos que proliferam na cidade: viver dentro de um parque. O Prime, no entanto, vai além e promete ser "o primeiro apartamento com árvore privativa de São Paulo: uma árvore no parque com o nome de cada família". E estampa, junto ao slogan, um brasão dourado (como se fosse um selo de qualidade, mas deve ser o timbre de cada família) com um nome fantasia: Almeida.
Porém, a campanha não termina aí. Além da árvore privativa, também somos apresentados ao conceito de "hobby box": uma garagem exclusiva para cada apartamento, "que você pode decorar e equipar para receber seus veículos e objetos mais preciosos". Frase que, novamente, vem acompanhada, na página dupla do jornal, da "perspectiva artística" de um ambiente com iluminação indireta e tons beges (como numa sala de estar), em que carro, moto e bicicleta contracenam com prateleiras de livros e uma caixa de ferramentas dispostas de forma casual.
O que está pressuposto nessas promessas? Falar em fetichização da vida privada é muito pouco. O que há, sem dúvida, é uma exacerbação in extremis da idéia de posse. E se, de um lado, o bem coletivo da natureza foi seqüestrado na forma individualizada de uma árvore, como se fosse um animal de estimação, de outro, o automóvel foi naturalizado e transformado em um membro da família, devendo ter um cômodo especialmente preparado para recebê-lo, como a um bebê que chega da maternidade.


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