São Paulo, Sábado, 20 de Novembro de 1999
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POESIA

Utilidades dos poemas surgem de duas formas

RÉGIS BONVICINO
especial para a Folha

Qualquer livro de poemas responde à pergunta: para que serve a poesia? Esta questão tem, ao menos, dois parâmetros para que possa ser respondida. O da necessidade e o da possibilidade. Para Donizete Galvão, nascido em 1955, em "Ruminações", seu quinto volume, a necessidade de poesia se impõe como reelaboração da memória do que ele viveu, no campo e na "cidadezinha qualquer", na infância: "Ama o inominado/ o perecível/ o particular/ a coleção de cacos de louça/ os arreios e os antolhos das mulas/ a caixa de ferramentas do avô/ o cavalo baio com o olho cego/ a luz do sol sobre as encostas/ a dureza das macaúbas...".
Galvão, embora possa parecer, não é nostálgico. Tem ele a consciência que o "inominado" está, como a própria palavra, "minado", e que a recuperação da memória é máscara para criticar o que se vive agora. Os melhores momentos de "Ruminações" são aqueles nos quais o autor se afasta mais nitidamente de um tom modernista brasileiro para explorar outras possibilidades. Destacaria nesse sentido "O Grito": "O porco guincha/ e sob a pata dianteira/ sai a golfada de sangue/ que enche a bacia./ Horas depois,/ pronto o chouriço,/ comemos o sangue preto, as tripas, o grito".
O poema desaliena o hábito de "comer", reatando-o a um ato brutal: o de matar. Há encontro de linguagem quando "chouriço" penetra, de modo econômico, em "grito", ecoando "guincho" para representar lágrimas (choro) e assassinato. Galvão procura identificar a poesia com um deslocamento: o passado ou aquilo que se perdeu: "...passei a tarde inteira/ acenando para o trem/ Ao meu aceno de adeus,/ não respondia ninguém".
Há coerência entre essa espécie de releitura que faz de Carlos Drummond de Andrade, seu universo particular, de valores humanistas, e a recuperação de um certo léxico.
Já Antonio Moura, nascido em 1963, firma-se com "Hong Kong & Outros Poemas", seu segundo livro, como uma das maiores revelações dos anos 90. Moura encarna em si descentramentos: paraense (distante, portanto, do eixo Rio/São Paulo), negro e abertamente cosmopolita afirma a poesia como necessidade de afrontamento das possibilidades.
A crítica à sociedade é disparada com a linguagem, que se anota na página como expressionismo primitivo de poderosa intuição e contemporaneidade: "Paira/ sobre as cabeças/ uma alta quantia de estrelas/ Na terra/ olhos vendados/ onde se lê grafitado: à venda..." - para concluir, nessa peça que dá título ao livro, que, à noite, "o sol é ouro especulado".
A idéia de espectro, de espelho, como se dia e noite do ponto de vista do capitalismo mundial fossem a mesma coisa. Sem passado ou presente possível o poeta indaga: "...um céu/ macio, sexo/ Um sol, duro osso/ Um mundo/ sem nexo/ exigindo corpo".
É o testemunho da virtualidade, não só da vida atual e real, mas igualmente da poesia como rito, ritmo e capacidade de predizer,a um incerto futuro: "...a eternidade/ há de/ desatar os pêndulos/ dissolvendo-os/ nas águas".


Avaliação:    


Livro: Ruminações
Autor: Donizete Galvão
Editora: Nanquim Editorial
Quanto: R$ 15 (80 págs.)



Livro: Hong Kong & Outros Poemas
Autor: Antonio Moura
Editora: Ateliê Editorial
Quanto: R$ 12 (96 págs)




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