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RESENHA DA SEMANA
O conto é uma piada
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Kurt Vonnegut, 77, autor dos
célebres romances "Matadouro
Número 5"
(1969) e "Almoço de Campeões" (1973), entre
outros tantos, começou
-quem diria- escrevendo
contos em revistas populares,
como a "The Saturday Evening
Post", cujas capas imortalizaram as ilustrações tipicamente
americanas de Norman Rockwell.
Ninguém com um mínimo
de bom senso poderia imaginar hoje a sátira implacável das
ficções científicas de Vonnegut, considerado um dos fundadores do pós-modernismo
literário americano, ilustrada
pelo singelo, tradicional e, neste caso, profundamente incompatível Rockwell. Mas é o
próprio Vonnegut quem faz
questão de frisar que na época
em que começou, a julgar pela
forma "tosca" de seus primeiros textos, não passava de um
"orangotango" literário.
"Graças às revistas populares, aprendi na prática a ser um
escritor. Esses aprendizados literários remunerados, com padrões de qualidade tão baixos,
não existem mais", constata o
autor no posfácio da coletânea
"Bagombo Snuff Box" (A Tabaqueira de Bagombo), que
acaba de sair na Inglaterra, reunindo pela primeira vez em livro 24 contos do seu "período
simiesco".
O que aconteceu afinal com
essas revistas? Foram substituídas pela televisão, responde o
escritor: "Apesar de tudo,
meus contos podem ser interessantes como relíquias de um
tempo anterior à TV".
Depois de mostrar a função
calmante dessas ficções para o
americano médio que chegava
em casa cansado de um dia de
trabalho, Vonnegut conclui
que "um conto", graças a seus
efeitos fisiológicos e psicológicos, está mais próximo de estilos budistas de meditação do
que de qualquer outra forma
de entretenimento narrativo.
De onde se tira, por consequência lógica, mas sem grande verossimilhança, que a televisão que o substituiu deve ser
hoje o que há de mais próximo
de um "cochilo budista".
A despeito do julgamento
sarcástico que Vonnegut faz do
estado atual da cultura e de
seus textos de iniciante, alguns
contos dessa coletânea deixam
bem claro que não foram escritos por um orangotango. E que
seus "efeitos fisiológicos e psicológicos" nada têm de calmantes. São histórias que despertam, muitas vezes pela reviravolta cômica ao final, para o
absurdo de uma sociedade
aparentemente tão pacata em
sua cisão quase esquizofrênica
em relação ao resto do mundo.
É o que se lê no conto que dá
título ao volume, "Bagombo
Snuff Box". Um sujeito volta 11
anos depois à cidade onde
abandonou sua primeira mulher, porque sofria de um temperamento que não o permitia
ficar preso a um só lugar. Reencontra a ex-mulher, que se casou de novo e teve um filho, e
lhe dá uma caixinha, uma tabaqueira, que diz ter trazido de
uma de suas viagens, de Bagombo, no Ceilão.
Vende a história de que é um
homem do mundo. Até o filho
da ex-mulher lhe perguntar
onde fica o Ceilão e ele responder: "Na costa da África". É o
que faz sua história desmoronar e o leitor acabar descobrindo que, como a ex-mulher, ele
também se casou de novo e leva uma vida tipicamente americana e sem graça em Levittown, Long Island.
Nesses textos, a revelação do
auto-engano e das desilusões
não é uma forma de se filiar à
tradição sentimentalista do
conto americano, que ainda
podia ser ilustrada por Norman Rockwell e nos anos 80
reafirmou o seu domínio com
o destaque dado a escritores
minimalistas-realistas como
Raymond Carver, Richard
Ford e Tobias Wolff. Vonnegut
não é um realista. Seus contos
são escritos como piadas.
Para o autor, os Estados Unidos são o próprio lugar do nonsense à medida que aspiram ao
paraíso. E o paraíso é o lugar do
nonsense por excelência, como
fica evidente na parábola de ficção científica "2BR02B".
O título do conto é o número
que se deve discar para acionar
a própria morte num mundo
onde não existe mais envelhecimento, doença ou morte natural. E onde, por questões de
controle demográfico, para ter
um filho é preciso que alguém
concorde antes em morrer, cedendo seu lugar.
É um "mundo perfeito" onde
não pode haver críticas, onde
você é obrigado a gostar de tudo. Um mundo onde os valores
se invertem: é por ser o próprio
inferno que o paraíso só pode
ser o lugar do nonsense.
É assim também que no conto "Lovers Anonymous" um
marido dedicado descobre ter
sido um escravo da mulher ao
ler um manual feminista e em
"Der Arme Dolmetsher" só o
humor consegue retratar o
horror da guerra. É sobre esse
planeta peculiar em que tudo é
o contrário que Vonnegut escreve suas piadas mais cruéis e
cômicas.
Avaliação:
Livro: Bagombo Snuff Box
Autor: Kurt Vonnegut
Editora: Jonathan Cape
Quanto: R$ 51 (298 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.co.uk, www.waterstones.co.uk
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