São Paulo, Sábado, 20 de Novembro de 1999
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RESENHA DA SEMANA

O conto é uma piada

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Kurt Vonnegut, 77, autor dos célebres romances "Matadouro Número 5" (1969) e "Almoço de Campeões" (1973), entre outros tantos, começou -quem diria- escrevendo contos em revistas populares, como a "The Saturday Evening Post", cujas capas imortalizaram as ilustrações tipicamente americanas de Norman Rockwell.
Ninguém com um mínimo de bom senso poderia imaginar hoje a sátira implacável das ficções científicas de Vonnegut, considerado um dos fundadores do pós-modernismo literário americano, ilustrada pelo singelo, tradicional e, neste caso, profundamente incompatível Rockwell. Mas é o próprio Vonnegut quem faz questão de frisar que na época em que começou, a julgar pela forma "tosca" de seus primeiros textos, não passava de um "orangotango" literário.
"Graças às revistas populares, aprendi na prática a ser um escritor. Esses aprendizados literários remunerados, com padrões de qualidade tão baixos, não existem mais", constata o autor no posfácio da coletânea "Bagombo Snuff Box" (A Tabaqueira de Bagombo), que acaba de sair na Inglaterra, reunindo pela primeira vez em livro 24 contos do seu "período simiesco".
O que aconteceu afinal com essas revistas? Foram substituídas pela televisão, responde o escritor: "Apesar de tudo, meus contos podem ser interessantes como relíquias de um tempo anterior à TV".
Depois de mostrar a função calmante dessas ficções para o americano médio que chegava em casa cansado de um dia de trabalho, Vonnegut conclui que "um conto", graças a seus efeitos fisiológicos e psicológicos, está mais próximo de estilos budistas de meditação do que de qualquer outra forma de entretenimento narrativo. De onde se tira, por consequência lógica, mas sem grande verossimilhança, que a televisão que o substituiu deve ser hoje o que há de mais próximo de um "cochilo budista".
A despeito do julgamento sarcástico que Vonnegut faz do estado atual da cultura e de seus textos de iniciante, alguns contos dessa coletânea deixam bem claro que não foram escritos por um orangotango. E que seus "efeitos fisiológicos e psicológicos" nada têm de calmantes. São histórias que despertam, muitas vezes pela reviravolta cômica ao final, para o absurdo de uma sociedade aparentemente tão pacata em sua cisão quase esquizofrênica em relação ao resto do mundo.
É o que se lê no conto que dá título ao volume, "Bagombo Snuff Box". Um sujeito volta 11 anos depois à cidade onde abandonou sua primeira mulher, porque sofria de um temperamento que não o permitia ficar preso a um só lugar. Reencontra a ex-mulher, que se casou de novo e teve um filho, e lhe dá uma caixinha, uma tabaqueira, que diz ter trazido de uma de suas viagens, de Bagombo, no Ceilão.
Vende a história de que é um homem do mundo. Até o filho da ex-mulher lhe perguntar onde fica o Ceilão e ele responder: "Na costa da África". É o que faz sua história desmoronar e o leitor acabar descobrindo que, como a ex-mulher, ele também se casou de novo e leva uma vida tipicamente americana e sem graça em Levittown, Long Island.
Nesses textos, a revelação do auto-engano e das desilusões não é uma forma de se filiar à tradição sentimentalista do conto americano, que ainda podia ser ilustrada por Norman Rockwell e nos anos 80 reafirmou o seu domínio com o destaque dado a escritores minimalistas-realistas como Raymond Carver, Richard Ford e Tobias Wolff. Vonnegut não é um realista. Seus contos são escritos como piadas.
Para o autor, os Estados Unidos são o próprio lugar do nonsense à medida que aspiram ao paraíso. E o paraíso é o lugar do nonsense por excelência, como fica evidente na parábola de ficção científica "2BR02B".
O título do conto é o número que se deve discar para acionar a própria morte num mundo onde não existe mais envelhecimento, doença ou morte natural. E onde, por questões de controle demográfico, para ter um filho é preciso que alguém concorde antes em morrer, cedendo seu lugar.
É um "mundo perfeito" onde não pode haver críticas, onde você é obrigado a gostar de tudo. Um mundo onde os valores se invertem: é por ser o próprio inferno que o paraíso só pode ser o lugar do nonsense.
É assim também que no conto "Lovers Anonymous" um marido dedicado descobre ter sido um escravo da mulher ao ler um manual feminista e em "Der Arme Dolmetsher" só o humor consegue retratar o horror da guerra. É sobre esse planeta peculiar em que tudo é o contrário que Vonnegut escreve suas piadas mais cruéis e cômicas.


Avaliação:    

Livro: Bagombo Snuff Box
Autor: Kurt Vonnegut
Editora: Jonathan Cape
Quanto: R$ 51 (298 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.co.uk, www.waterstones.co.uk




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