São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2008

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Comentário/show

Sem medo de ser brega, Madonna monta circo no estádio do Morumbi

Cantora aparece feito leoa, dança com ciganos e joga para única torcida, mas deixa ver que é mais business do que show

HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Palhaço quer do circo a explosão atômica. Expectativa demais? Fica difícil quando o megashow é precedido pelo megatrânsito.
Poucas placas orientando. Tive sorte de pedir informação para um segurança simpático. Mas me mandou para a fila errada. Os PMs ficaram horas apalpando o povo. Na minha vez, uma apalpadinha de nada, não deu nem tesão. É triste ir de crítico numa festa, pior que estar sóbrio numa suruba.
Ainda bem que atrasou. A gelada lona do Morumbi estava em festa. Duzentos e cinqüenta paus para ver a Madonna do mesmo ponto de vista que o Rogério Ceni vê o Marcos, só que com muito mais gente na frente. Definitivamente megashow não é para baixinhos.
O início do videogame é quase catártico. Uma bola vence desafios como um espermatozóide vitorioso. Somos nós, privilegiados -se é que é possível existir uma multidão de privilegiados-, que acreditamos religiosamente que aquilo está acontecendo por nossa causa.
E o cirquinho da Madonna não é fraco. O grande trunfo é o ecletismo que não tem medo de ser brega. A diva surge no seu trono e abre as pernas. Mostra seu táxi-maluco cor-de-rosa e acrobatas enchem a cena. O Soleil tem muito que aprender!
Depois, aparece feito leoa encapuzada, presa na jaula, cujas grades vertem imagens. O mundo exótico está no megapicadeiro: ciganos e violinos dramáticos, sapateado flamenco e imagem de gente pobre do Oriente. A opressão da guerra se mistura à alegria do estádio que quer chacoalhar seus corpos cheios de hedonismo.
Desfilam "madres teresas" e "luther kings" para fechar a música com um Barack Obama congelado. É a última diva do pop ou a mais uma esperta populista? Vestir camisa da seleção, jogar para a única torcida... Coragem mesmo é entrar com a camisa da Argentina, colocar uma foto do Bush e não desviar de sapatos voadores.

Repensando a vida
Qual a próxima diva? Britney, Sandy ou Ivete? Vejo mais honestidade nas barangas do créu e seus buzanfãs vibratórios... Sou mais a arte vagabunda que as vagabundas da arte.
Quando a gente tem obrigação de dar opinião acaba repensando um pouco mais a vida. Era difícil ser jovem na década de 1980. Salvo Titãs, Angeli, Laerte, Paralamas e Teatro do Ornitorrinco, o tom geral era uma merda. Madonna surgiu no tempo em que a MTV passava videoclipes. Quebrou a monotonia, transbordou uma sexualidade que estava emoldurada. Abriu caminho para que os gays saltassem do obscuro ao orgulho, para que a moda saísse da caretice romântica e globalizou a ousadia.
Vão dizer que sou mal-comido por ir contra um Morumbi lotado de empolgação. Mas isso não tem nada a ver com a clownesca diva e seus fãs. E que importa se gostei ou não? Não tira nem um centavo da milionária e nem ela vai dar para mim. O valor simbólico é que me preocupa. Madonna é uma das expressões máximas em competência. O que me pergunto é: a serviço de quê? Felicidade enlatada em musical da Broadway. Se tinha algo de libertador, foi absorvido. É mais business que show. Vai do segurança mal-informado e chega até os executivos que não sabem vender ingressos pela internet. Esse é o veneno que corrói a arte. Sem crises internacionais. É tempo para se divertir. For fun. Nem que para isso, tenha que se ficar de quatro. Four fun.


HUGO POSSOLO, 46, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo Parlapatões e do Circo Roda Brasil.


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