|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Comentário/show
Sem medo de ser brega, Madonna monta circo no estádio do Morumbi
Cantora aparece feito leoa, dança com ciganos e joga para única torcida, mas deixa ver que é mais business do que show
HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Palhaço quer do circo a
explosão atômica. Expectativa demais? Fica
difícil quando o megashow é
precedido pelo megatrânsito.
Poucas placas orientando.
Tive sorte de pedir informação
para um segurança simpático.
Mas me mandou para a fila errada. Os PMs ficaram horas
apalpando o povo. Na minha
vez, uma apalpadinha de nada,
não deu nem tesão. É triste ir
de crítico numa festa, pior que
estar sóbrio numa suruba.
Ainda bem que atrasou. A gelada lona do Morumbi estava
em festa. Duzentos e cinqüenta
paus para ver a Madonna do
mesmo ponto de vista que o
Rogério Ceni vê o Marcos, só
que com muito mais gente na
frente. Definitivamente megashow não é para baixinhos.
O início do videogame é quase catártico. Uma bola vence
desafios como um espermatozóide vitorioso. Somos nós, privilegiados -se é que é possível
existir uma multidão de privilegiados-, que acreditamos religiosamente que aquilo está
acontecendo por nossa causa.
E o cirquinho da Madonna
não é fraco. O grande trunfo é o
ecletismo que não tem medo de
ser brega. A diva surge no seu
trono e abre as pernas. Mostra
seu táxi-maluco cor-de-rosa e
acrobatas enchem a cena. O Soleil tem muito que aprender!
Depois, aparece feito leoa encapuzada, presa na jaula, cujas
grades vertem imagens. O
mundo exótico está no megapicadeiro: ciganos e violinos dramáticos, sapateado flamenco e
imagem de gente pobre do
Oriente. A opressão da guerra
se mistura à alegria do estádio
que quer chacoalhar seus corpos cheios de hedonismo.
Desfilam "madres teresas" e
"luther kings" para fechar a
música com um Barack Obama
congelado. É a última diva do
pop ou a mais uma esperta populista? Vestir camisa da seleção, jogar para a única torcida...
Coragem mesmo é entrar com
a camisa da Argentina, colocar
uma foto do Bush e não desviar
de sapatos voadores.
Repensando a vida
Qual a próxima diva? Britney, Sandy ou Ivete? Vejo mais
honestidade nas barangas do
créu e seus buzanfãs vibratórios... Sou mais a arte vagabunda que as vagabundas da arte.
Quando a gente tem obrigação de dar opinião acaba repensando um pouco mais a vida.
Era difícil ser jovem na década
de 1980. Salvo Titãs, Angeli,
Laerte, Paralamas e Teatro do
Ornitorrinco, o tom geral era
uma merda. Madonna surgiu
no tempo em que a MTV passava videoclipes. Quebrou a monotonia, transbordou uma sexualidade que estava emoldurada. Abriu caminho para que
os gays saltassem do obscuro ao
orgulho, para que a moda saísse
da caretice romântica e globalizou a ousadia.
Vão dizer que sou mal-comido por ir contra um Morumbi
lotado de empolgação. Mas isso
não tem nada a ver com a clownesca diva e seus fãs. E que importa se gostei ou não? Não tira
nem um centavo da milionária
e nem ela vai dar para mim.
O valor simbólico é que me
preocupa. Madonna é uma das
expressões máximas em competência. O que me pergunto é:
a serviço de quê? Felicidade
enlatada em musical da Broadway. Se tinha algo de libertador,
foi absorvido. É mais business
que show. Vai do segurança
mal-informado e chega até os
executivos que não sabem vender ingressos pela internet. Esse é o veneno que corrói a arte.
Sem crises internacionais. É
tempo para se divertir. For fun.
Nem que para isso, tenha que
se ficar de quatro. Four fun.
HUGO POSSOLO, 46, é palhaço, dramaturgo e
diretor do grupo Parlapatões e do Circo Roda
Brasil.
Texto Anterior: Museu Imperial de Petrópolis é fechado Próximo Texto: Coxas e bumbum duro transmitem força e poder Índice
|