|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA "GAROTAS DE FUTURO"
Leigh se submete aos personagens
CECÍLIA SAYAD
especial para a Folha
Toda narrativa possui elementos básicos em torno da qual é
conduzida: uma trama e os personagens nela envolvidos.
Eles estão de tal forma relacionados no desenvolvimento de
uma história que parecem indistinguíveis.
Em algumas obras, porém, um
desses elementos sobrepõe-se ao
outro.
Há filmes em que os personagens existem para servir a uma
trama. Em outros, é a trama que
serve aos personagens.
Mike Leigh é um diretor que parece preferir a segunda categoria.
"Segredos e Mentiras" e este
"Garotas de Futuro", que estréia
hoje no Cinesesc, são histórias tão
centradas nas personalidades que
as habitam que se poderia dizer
que o roteiro se submete às suas
características físicas e psicológicas.
Leigh não chega ao extremo de
John Cassavetes, cujos filmes,
muitas vezes centrados não só
nos personagens, mas nos atores,
tinham sua narrativa de tal forma
submetida a eles que a duração
das cenas era determinada mais
pelo tempo da atuação do que pelo da narrativa tradicional.
Mas é como se o diretor britânico, antes de elaborar a sinopse,
trabalhasse no desenvolvimento
das personalidades que conduzirão a trama, cabendo então a elas
ditar os rumos que a história deve
tomar.
O filme "Garotas de Futuro"
narra o reencontro de duas amigas adultas que partilharam as dificuldades e inseguranças da juventude.
O sentimento que primeiro
aflora é de surpresa frente às comodidades da vida estável que
ambas atingem, e que contrasta
com o caos e decadência do momento em que se conheceram.
Alternando o desconforto inicial do reencontro com cenas do
passado que revelam o início de
uma relação marcada pela solidariedade e pela agressividade, o diretor Mike Leigh traça o perfil de
mulheres de personalidades semelhantes e comportamentos
opostos.
Tanto Hannah (Katrin Cartlidge) quanto Annie (Lynda Steadman) são personagens inseguras
e solitárias.
Mas, enquanto a primeira se esconde por trás de uma máscara de
arrogância e humor cáustico, a
outra escancara seus medos em
crises nervosas.
O desconforto do início da amizade se repete no reencontro das
amigas, criando um paralelismo
entre passado e presente, que seguem um mesmo percurso: estranhamento, desenvoltura, intimidade e despedida.
Essa repetição contribui para
uma claustrofobia recorrente nos
filmes de Leigh, cuja visão possui
um tipo de humor que imprime a
tudo uma ironia rara, que, em vez
de instigar o pessimismo, lança
sobre os personagens e seus dramas insolúveis um olhar de compaixão e afeto.
Avaliação:
Filme: Garotas de Futuro (Career Girls)
Diretor: Mike Leigh
Produção: Inglaterra, 1997
Com: Katrin Cartlidge, Lynda Steadman
Quando: a partir de hoje no Cinesesc
Texto Anterior: Cinema / "Goya": Saura pinta Goya reminiscente Próximo Texto: Caralos Heitor Cony: Perspectivas do brasileiro para 500 anos Índice
|