São Paulo, sexta-feira, 21 de abril de 2000


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CARLOS HEITOR CONY

Perspectivas do brasileiro para 500 anos

Outro dia, em Curitiba, deram-me como assunto de palestra um tema esquisito, embora atual: o brasileiro nos próximos 500 anos. Seria mais difícil se me pedissem para falar sobre o brasileiro dos últimos 500 anos. Mesmo assim, aceitei a provocação, sendo como sou: um cara que nem sabe o que será nos próximos cinco minutos.
Para começar, fiz uma solene declaração de princípios, um dos quais é justamente não ter princípio algum. Lembro o "generalíssimo" Franco, ditador na Espanha durante mais de 40 anos. Um opositor de seu regime fora condenado à morte, com um tipo de execução tipicamente espanhol: o garrote vil. Para falar a verdade, nem sei exatamente como era esse tipo de pena capital, mas, pelo nome (garrote vil), devia ser especialíssimo, pior do que o fuzilamento, o enforcamento, a cadeira elétrica, a câmara de gás.
Houve uma onda internacional contra a sentença, o papa, as Nações Unidas, o Dalai Lama, as entidades mais nobres da humanidade apelaram ao ditador para que comutasse a pena, matasse o adversário, mas por outro meio, uma coisa mais civilizada.
A resposta do ditador foi breve e bastante: nada podia fazer porque se tratava de um princípio. E ele, bem como seu regime, tinham princípios. Desde então eu comecei a suspeitar toda a vez que alguém apela para um princípio a fim de fazer ou não fazer determinada coisa.
Invocando minha absoluta falta de princípios, pintei um quadro aterrador dos próximos 500 anos para o brasileiro, para o Brasil, para o mundo. Não me incluí nesta perspectiva porque não pretendo durar tanto tempo.
Acompanho com assombro o que andam dizendo sobre os primeiros 500 anos do brasileiro. Concordo com todas as opiniões emitidas e com as minhas em primeiríssimo lugar. Tenho para mim que há dois referenciais literários para nos definir. De um lado, o produto daquilo que Gilberto Freyre chamou de casa-grande e senzala, o homem miscigenado, potente e tendendo a ser feliz. De outro, o Macunaíma, herói sem nenhuma definição, ou sem nenhum caráter -como queria o próprio Mário de Andrade.
Fomos e seremos assim, em nossa essência, embora as circunstâncias mudem e nós mudemos com elas. Retomando a imagem literária, citemos a Capitu adulta que estava dentro da casca da Capitu menina -e teremos como sempre a intervenção soberana de Machado de Assis.
Um rapaz da platéia me perguntou onde ficaria o homem de Guimarães Rosa -outra coordenada que nos ajuda a definir o brasileiro. Evidente que o universo de Rosa é sobretudo verbal, mas o homem é causa e efeito do verbo. Por isso mesmo, o personagem rosiano tem a ver com o homem de Gilberto Freyre e de Mário de Andrade. É um refugo consciente da casa-grande e da senzala, o opositor de uma e de outra, criando a sua própria vereda mas sem esquecer o ressentimento social do qual se afastou e contra o qual procura lutar.
É também macunaímico, pois sem definição catalogada na escala de valores culturais oriundos de sua formação racial. Nem por acaso um dos personagens mais importantes do mundo de Rosa é uma mulher que se faz passar por jagunço. Ou seja, um herói -ou heroína- sem nenhum caráter.
Tomando Gilberto Freyre como a linha vertical e Mário de Andrade como a linha horizontal de um ângulo reto, teríamos Guimarães Rosa como a hipotenusa fechando o triângulo. A imagem geométrica pode ser forçada, mas foi a que me veio na hora -e acho que fui entendido.
Mas aí quem não entendeu mais nada fui eu mesmo. Aliás, pouco entendo de mim e, quanto mais o tempo passa, mais me surpreendo com o que digo e faço. O brasileiro não merecerá perdão nos próximos 500 anos? Por que perdão e por que tanto tempo para chegar a algum lugar, ainda que este lugar seja o perdão?
Já li em algum lugar que daqui a cem anos seremos todos iguais, búlgaros e paraguaios, croatas e esquimós. Sendo assim, ficará difícil descobrir um brasileiro no meio da multidão uniforme que comporá a humanidade futura. Mas sempre haverá algum cacoete que nos identificará nacionalmente, um atributo inarredável que nos marcará pela eternidade afora.
É a coçação do saco. Não se trata de uma afirmação de virilidade ou de má educação. Muito menos de hostilidade social ou de doença sexual. É um hábito que adquirimos nem sei onde nem para quê. Dizem que o italiano gesticula demais, o inglês fala com asma, o português bota o lápis na orelha, o espanhol é contra o governo, o alemão bebe cerveja e o americano mastiga chicletes. O brasileiro coça o saco, insensivelmente, sem maldade e sem coceira específica. É uma declaração de princípios -e volto eu a falar em princípios, embora não os tenha.
Não sei se me expliquei decentemente. Pode parecer uma vulgaridade a mais falar dessa característica nacional, mas há piores. De maneira que não tenho nenhum interesse em saber como seremos daqui a 500 anos. Não iremos para a lata de lixo da história. Mas continuaremos a não chegar a lugar algum.


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