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ARTIGO
"Cabra-Cega" mostra o triunfo do desejo em situações-limite
MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Após o impactante final do filme "Cabra-Cega", de Toni
Venturi, ao som de Chico Buarque e Fernanda Porto cantando
"Roda-Viva", em meio a um fundo que lembra o céu azulado, lemos a frase: "Aos muitos brasileiros cabra-cegas que tentaram
atravessar a escuridão para tomar
os céus de assalto". Aí coloca-se
uma clara tomada de posição a favor do sonho e da utopia, explicitando uma necessária parcialidade no trabalho com temas tão importantes e ainda não elaborados
de nossa história recente. Já houve filmes que tematizaram o período da ditadura militar, mostrando militantes dilacerados,
tanto física como psiquicamente.
"O que É Isso, Companheiro" é o
exemplo mais recente. Mas nenhum deles penetrou tão profundamente na alma de um militante
da luta armada, explicitando contradições e sofrimentos inerentes
à escolha feita.
A situação que o filme retrata é
conhecida: após a queda de uma
casa aparelho (nome dado aos locais clandestinos onde se escondiam e viviam os militantes, principalmente os da luta armada) nas
mãos da repressão e a prisão de
sua companheira, Tiago (Leonardo Medeiros) -também o "nome frio", nome forjado para que a
polícia não o localizasse- é abrigado em um apartamento de um
simpatizante (alguém que não
participava das ações armadas).
Para localizar o momento, o filme utiliza importante material de
arquivo das passeatas e do movimento estudantil, mostrando a
origem dos movimentos de luta
armada. E, em flashback, o momento da prisão de sua companheira e o tiro que atinge Tiago.
Rosa (Débora Duboc) é a militante que faz a ponte entre Tiago e a
organização. Matheus (Jonas
Bloch) é o líder que orienta Rosa e
Tiago. É preciso frisar que o trabalho dos atores é primoroso.
Tiago vive um momento que,
subjetivamente, é atroz: escolheu
a luta armada e, para sobreviver,
provavelmente, escolheu também
a clandestinidade. Mas, certamente, não escolheu ter que ficar
enjaulado, sem poder fazer nada
pela tão sonhada revolução. Ou
seja, aquilo que alicerçava sua força para tolerar os limites que a situação de clandestinidade impõe,
a sua vivência de estar realizando
um sonho coletivo de luta por um
mundo melhor, tudo isso está impossibilitado.
Para completar seu exasperamento, a organização, diante do
número de mortos e da não-participação do povo, decide mudar a
orientação, provavelmente questionando a luta armada. Falta o
chão a Tiago. Assistimos a um
desmoronamento psíquico que
vai levando a um apego enlouquecido aos seus ideais e a uma
impossibilidade de pensamento.
São momentos terríveis esses
em que desconhecemos o que é o
limite da realidade e o que é o nosso estado subjetivo. A paranóia
tem fundamento objetivo ou tem
a ver com um estado da alma?
A dureza de Tiago aparece principalmente nos diálogos com Pedro por quem faz questão de explicitar seu menosprezo, uma vez
que apenas aqueles que pegam
em armas merecem seu respeito.
Em nenhum momento Tiago é
heroicizado: os conflitos se sucedem sem trégua.
Rosa, sábia e suave, vai vendo
como Tiago não consegue viver,
vai mostrando como torna ainda
mais dura a sua situação. É belíssima a cena em que Rosa leva Tiago
para o terraço do alto do prédio e
os dois se amam, ao som de "Eu
quero é ver meu povo na rua...",
rodeados pelos prédios do centro
de São Paulo.
As mãos de Tiago se estendem
em direção à cidade e ao mundo
em uma entrega amorosa onde se
mistura a profunda ternura pelo
povo e o encantamento por Rosa.
Afinal, toda militância política deve ser um ato de amor. Caso contrário, vira cinismo.
No final, as armas e o salto em
direção ao sonho. Ou à morte?
Triste o momento onde manter o
sonho era correr risco de vida.
"Cabra-Cega" nos lembra que sonho é vida. Cuidar da possibilidade da utopia, nos momentos que
correm, é tarefa revolucionária
que o filme cumpre.
Miriam Chnaiderman é psicanalista e
documentarista
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