São Paulo, quinta-feira, 21 de abril de 2005

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ARTIGO

"Cabra-Cega" mostra o triunfo do desejo em situações-limite

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após o impactante final do filme "Cabra-Cega", de Toni Venturi, ao som de Chico Buarque e Fernanda Porto cantando "Roda-Viva", em meio a um fundo que lembra o céu azulado, lemos a frase: "Aos muitos brasileiros cabra-cegas que tentaram atravessar a escuridão para tomar os céus de assalto". Aí coloca-se uma clara tomada de posição a favor do sonho e da utopia, explicitando uma necessária parcialidade no trabalho com temas tão importantes e ainda não elaborados de nossa história recente. Já houve filmes que tematizaram o período da ditadura militar, mostrando militantes dilacerados, tanto física como psiquicamente. "O que É Isso, Companheiro" é o exemplo mais recente. Mas nenhum deles penetrou tão profundamente na alma de um militante da luta armada, explicitando contradições e sofrimentos inerentes à escolha feita.
A situação que o filme retrata é conhecida: após a queda de uma casa aparelho (nome dado aos locais clandestinos onde se escondiam e viviam os militantes, principalmente os da luta armada) nas mãos da repressão e a prisão de sua companheira, Tiago (Leonardo Medeiros) -também o "nome frio", nome forjado para que a polícia não o localizasse- é abrigado em um apartamento de um simpatizante (alguém que não participava das ações armadas).
Para localizar o momento, o filme utiliza importante material de arquivo das passeatas e do movimento estudantil, mostrando a origem dos movimentos de luta armada. E, em flashback, o momento da prisão de sua companheira e o tiro que atinge Tiago. Rosa (Débora Duboc) é a militante que faz a ponte entre Tiago e a organização. Matheus (Jonas Bloch) é o líder que orienta Rosa e Tiago. É preciso frisar que o trabalho dos atores é primoroso.
Tiago vive um momento que, subjetivamente, é atroz: escolheu a luta armada e, para sobreviver, provavelmente, escolheu também a clandestinidade. Mas, certamente, não escolheu ter que ficar enjaulado, sem poder fazer nada pela tão sonhada revolução. Ou seja, aquilo que alicerçava sua força para tolerar os limites que a situação de clandestinidade impõe, a sua vivência de estar realizando um sonho coletivo de luta por um mundo melhor, tudo isso está impossibilitado.
Para completar seu exasperamento, a organização, diante do número de mortos e da não-participação do povo, decide mudar a orientação, provavelmente questionando a luta armada. Falta o chão a Tiago. Assistimos a um desmoronamento psíquico que vai levando a um apego enlouquecido aos seus ideais e a uma impossibilidade de pensamento.
São momentos terríveis esses em que desconhecemos o que é o limite da realidade e o que é o nosso estado subjetivo. A paranóia tem fundamento objetivo ou tem a ver com um estado da alma?
A dureza de Tiago aparece principalmente nos diálogos com Pedro por quem faz questão de explicitar seu menosprezo, uma vez que apenas aqueles que pegam em armas merecem seu respeito. Em nenhum momento Tiago é heroicizado: os conflitos se sucedem sem trégua.
Rosa, sábia e suave, vai vendo como Tiago não consegue viver, vai mostrando como torna ainda mais dura a sua situação. É belíssima a cena em que Rosa leva Tiago para o terraço do alto do prédio e os dois se amam, ao som de "Eu quero é ver meu povo na rua...", rodeados pelos prédios do centro de São Paulo.
As mãos de Tiago se estendem em direção à cidade e ao mundo em uma entrega amorosa onde se mistura a profunda ternura pelo povo e o encantamento por Rosa. Afinal, toda militância política deve ser um ato de amor. Caso contrário, vira cinismo.
No final, as armas e o salto em direção ao sonho. Ou à morte? Triste o momento onde manter o sonho era correr risco de vida. "Cabra-Cega" nos lembra que sonho é vida. Cuidar da possibilidade da utopia, nos momentos que correm, é tarefa revolucionária que o filme cumpre.


Miriam Chnaiderman é psicanalista e documentarista

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