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São Paulo, quarta-feira, 21 de maio de 2003

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MARCELO COELHO

Seiscentos anos de pragmatismo político

"O poder, se não corrompe, amansa." E é por isso que "os próprios liberais, inconformistas nas suas origens, submergem no jogo institucional, guardando do passado apenas reminiscências vagas, o apagado fermento e a nostalgia difusa, confundidos os velhos ideais com os irresponsáveis ardores da juventude".
A frase é de Raymundo Faoro, em "Os Donos do Poder". Ele está descrevendo a traição de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Bernardo Pereira de Vasconcelos aos velhos ideais progressistas, nos idos de 1837. Mas poderia estar falando de coisas ocorridas cem anos depois: "No jogo inconsequente das manobras de cúpula, o "homem providencial", formado nas entrelinhas da ideologia colorida de utopia (...), encarna o condutor das transformações, em rumos novos. Muitos de seus seguidores lamentam, é verdade, a cautela dos seus passos, o temor de abrir as velas aos ventos".
É então, continua Faoro, que "os detentores do poder, oriundos das categorias socialmente superiores e das situações políticas dominantes, correm para o mito em gestação (...), instrumento pragmático, que salva os dedos sem sacrificar os anéis". O trecho citado analisa o golpe de Getúlio Vargas em 1937.
Nada de novo sob o sol, portanto. E nada de novo em 1709, quando a coroa portuguesa determina a centralização das milícias locais: "O Estado sobrepôs-se, estranho, alheio, distante à sociedade, amputando todos os meios que resistissem ao domínio. (...) É uma espécie de carapaça disforme, vinda de fora, importada". Contra isso, "cria-se, em toda parte, o sentimento de rebeldia informe, que se traduz em estranho conflito interior, com a vontade animosa na propaganda e na palavra, débil na ação e arrependida na hora das consequências. O inconfidente é bem o protótipo do homem colonial: destemperado e afoito na hora da conspiração, tímido diante das armas e, frente ao juiz, herege que renuncia ao pecado, saudoso da fé".
Muito menos eram diferentes as coisas em 1385, no reinado de d. João 1º, quando surge, segundo Faoro, o modelo político de que até hoje somos herdeiros. Trata-se de um Estado que não emana da dinâmica entre as classes sociais, mas que as controla de cima para baixo. "Junto ao rei, livremente recrutada, uma comunidade -patronato, parceria, oligarquia, como quer que a denomine a censura pública- manda, governa, dirige, orienta, determinando, não apenas formalmente, o curso da economia e as expressões da sociedade, sociedade tolhida, impedida, amordaçada."
Essa comunidade política, esse grupo formado de bacharéis, funcionários públicos, doutores, economistas, juízes é o que irá compor, ao longo dos séculos, aquilo que Faoro chama de "estamento burocrático".
O nome é bem feio e estranho, mas justamente visava a descrever uma entidade monstruosa, disforme, anônima e onipresente, a esmagar a sociedade. Cito as últimas frases de "Os Donos do Poder": "A cultura, que poderia ser brasileira, frustra-se ao abraço sufocante da carapaça administrativa. (...) Velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse".
E o célebre final: "O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante".
Raymundo Faoro morreu na semana passada, e não é só no espírito de uma homenagem póstuma que, a meu ver, esses trechos de "Os Donos do Poder" devem ser citados tão longamente. O estilo, a fraseologia, a gesticulação (se assim podemos dizer) do texto de Faoro são tão essenciais ao argumento quanto a grande massa de erudição histórica mobilizada em seu livro.
O gosto de Faoro pelos sinônimos em série -"manda, governa, dirige, orienta", "pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos"- tem, sem dúvida, o efeito de dar às análises do livro o mesmo ar de inevitabilidade, de insistência e de repetição histórica que organizava sua avaliação da política brasileira. E parece revelar, também, uma consciência quanto à incredulidade que sua tese pode despertar no leitor.
Seiscentos anos de domínio do estamento burocrático? Lembro-me do misto de assombro com que, capítulo depois de capítulo, fui acompanhando a visão, quase o pesadelo, de Raymundo Faoro, quando li "Os Donos do Poder" em 1976. Ao mesmo tempo, o tema essencial de seu livro -o divórcio entre Estado e sociedade- era uma realidade indiscutível e cotidiana naqueles tempos de declínio do regime militar.
A "sociedade brasileira", naquela época, parecia sacudir aos poucos o manto que a sufocava; era o tempo em que os sindicalistas de São Bernardo apostavam na organização autônoma das massas e numa democratização profunda do país.
Vemos hoje, com o PT no poder, mais acordos, apostasias e rendições ao pragmatismo do que seria de esperar. Não sei se, com isso, é a tese de Faoro que se confirma mais uma vez. Seria simplista (com a tese, não com a realidade) usá-la assim de chofre. "Os Donos do Poder" é um livro dramático, mas não fatalista. Digamos que, de 1976 até hoje, vivemos um processo de democratização crescente no país. Só que cada conquista parece ter o efeito de deixar tudo como está.


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