|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Seiscentos anos de pragmatismo político
"O poder, se não corrompe, amansa." E é por isso
que "os próprios liberais, inconformistas nas suas origens, submergem no jogo institucional, guardando do passado apenas reminiscências vagas, o apagado
fermento e a nostalgia difusa,
confundidos os velhos ideais com
os irresponsáveis ardores da juventude".
A frase é de Raymundo Faoro,
em "Os Donos do Poder". Ele está
descrevendo a traição de Antônio
Carlos Ribeiro de Andrada e Bernardo Pereira de Vasconcelos aos
velhos ideais progressistas, nos
idos de 1837. Mas poderia estar
falando de coisas ocorridas cem
anos depois: "No jogo inconsequente das manobras de cúpula,
o "homem providencial", formado
nas entrelinhas da ideologia colorida de utopia (...), encarna o condutor das transformações, em rumos novos. Muitos de seus seguidores lamentam, é verdade, a
cautela dos seus passos, o temor
de abrir as velas aos ventos".
É então, continua Faoro, que
"os detentores do poder, oriundos
das categorias socialmente superiores e das situações políticas dominantes, correm para o mito em
gestação (...), instrumento pragmático, que salva os dedos sem
sacrificar os anéis". O trecho citado analisa o golpe de Getúlio Vargas em 1937.
Nada de novo sob o sol, portanto. E nada de novo em 1709,
quando a coroa portuguesa determina a centralização das milícias locais: "O Estado sobrepôs-se,
estranho, alheio, distante à sociedade, amputando todos os meios
que resistissem ao domínio. (...) É
uma espécie de carapaça disforme, vinda de fora, importada".
Contra isso, "cria-se, em toda parte, o sentimento de rebeldia informe, que se traduz em estranho
conflito interior, com a vontade
animosa na propaganda e na palavra, débil na ação e arrependida na hora das consequências. O inconfidente é bem o protótipo do
homem colonial: destemperado e
afoito na hora da conspiração, tímido diante das armas e, frente
ao juiz, herege que renuncia ao
pecado, saudoso da fé".
Muito menos eram diferentes as
coisas em 1385, no reinado de d.
João 1º, quando surge, segundo
Faoro, o modelo político de que
até hoje somos herdeiros. Trata-se
de um Estado que não emana da
dinâmica entre as classes sociais,
mas que as controla de cima para
baixo. "Junto ao rei, livremente
recrutada, uma comunidade
-patronato, parceria, oligarquia, como quer que a denomine
a censura pública- manda, governa, dirige, orienta, determinando, não apenas formalmente,
o curso da economia e as expressões da sociedade, sociedade tolhida, impedida, amordaçada."
Essa comunidade política, esse
grupo formado de bacharéis, funcionários públicos, doutores, economistas, juízes é o que irá compor, ao longo dos séculos, aquilo
que Faoro chama de "estamento
burocrático".
O nome é bem feio e estranho,
mas justamente visava a descrever uma entidade monstruosa,
disforme, anônima e onipresente,
a esmagar a sociedade. Cito as últimas frases de "Os Donos do Poder": "A cultura, que poderia ser
brasileira, frustra-se ao abraço
sufocante da carapaça administrativa. (...) Velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o
florescimento do mundo virgem.
Deitou-se remendo de pano novo
em vestido velho, vinho novo em
odres velhos, sem que o vestido se
rompesse nem o odre rebentasse".
E o célebre final: "O fermento
contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu
ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada
de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras,
ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade
criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do
passado inexaurível, pesado, sufocante".
Raymundo Faoro morreu na
semana passada, e não é só no espírito de uma homenagem póstuma que, a meu ver, esses trechos
de "Os Donos do Poder" devem
ser citados tão longamente. O estilo, a fraseologia, a gesticulação
(se assim podemos dizer) do texto
de Faoro são tão essenciais ao argumento quanto a grande massa
de erudição histórica mobilizada
em seu livro.
O gosto de Faoro pelos sinônimos em série -"manda, governa, dirige, orienta", "pano novo em vestido velho, vinho novo em
odres velhos"- tem, sem dúvida,
o efeito de dar às análises do livro
o mesmo ar de inevitabilidade, de
insistência e de repetição histórica que organizava sua avaliação
da política brasileira. E parece revelar, também, uma consciência
quanto à incredulidade que sua
tese pode despertar no leitor.
Seiscentos anos de domínio do
estamento burocrático? Lembro-me do misto de assombro com
que, capítulo depois de capítulo,
fui acompanhando a visão, quase
o pesadelo, de Raymundo Faoro,
quando li "Os Donos do Poder"
em 1976. Ao mesmo tempo, o tema essencial de seu livro -o divórcio entre Estado e sociedade- era uma realidade indiscutível e
cotidiana naqueles tempos de declínio do regime militar.
A "sociedade brasileira", naquela época, parecia sacudir aos
poucos o manto que a sufocava;
era o tempo em que os sindicalistas de São Bernardo apostavam
na organização autônoma das
massas e numa democratização
profunda do país.
Vemos hoje, com o PT no poder,
mais acordos, apostasias e rendições ao pragmatismo do que seria
de esperar. Não sei se, com isso, é
a tese de Faoro que se confirma
mais uma vez. Seria simplista
(com a tese, não com a realidade)
usá-la assim de chofre. "Os Donos
do Poder" é um livro dramático,
mas não fatalista. Digamos que,
de 1976 até hoje, vivemos um processo de democratização crescente no país. Só que cada conquista
parece ter o efeito de deixar tudo
como está.
Texto Anterior: Documentário: Cineastas "brincam" de irmãos Lumière Próximo Texto: Bienal do livro: Estrela editorial inglesa fareja o Brasil Índice
|