São Paulo, quinta-feira, 21 de maio de 2009

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NINA HORTA

As propulsoras do feminismo


Levava para a lavanderia a grade do fogão, para que um eventual cafezinho não o manchasse


IRACEMA ERA uma mulata clara, bonita e, quando entrou lá em casa, deveria ser pouco mais que uma menina, 17, 18 anos. Tinha pés grandes e vivia na luta para achar sapatos. Eu vivia grudada nela, sabia dela inteira, de suas verrugas brancas e porosas nas mãos, nas mezinhas para curá-las, chá de jurubeba, alguma coisa jogada atrás do muro e, um dia, as verrugas sumiram mesmo, mas foram substituídas por cílios encravados.
Cantava afinadíssima músicas dolentes, Dalva de Oliveira, Vicente Celestino. "Segredo é para as quatro paredes..." E um dia, arranjou um namorado, noivo. Quando foi casar, ele sumiu. Minha mãe, que não tinha papas na língua, chamou-o às falas. "É que nóis dois num orna." Não ornavam mesmo, ele muito baixo, ela muito alta, mas teve que casar sem ornar. Ora, vamos.
Iracema deixou para nós a lembrança de um bolinho de arroz perfeito, nada massudo, meio disforme e cheio de salsinha. E uma berinjela recheada com uma carne moída que se dissolvia num patê. E, à tardinha, ela passava roupa, um cheiro de limpo, de anil, de goma, ferro quente, e escutávamos a novelinha da Sarita Campos, no rádio. Vidradas. E ela frequentava a rádio Tupi, ia aos programas de auditório, contava as fofocas dos corredores, e eu sonhava com a TV, seria verdade, quanto tempo levaria a chegar aqui, impossível, eu veria a cara do Homero Silva. Do Homero Silva! Uma vez por semana, ela me acordava com as mãos molhadas passadas no meu rosto, para adiantar a descida para a aula de inglês, tendo antes posto móveis no corredor, como numa faxina, para atrasar a caminhada da professora. Na mesa, já aberto, o Berlitz, livro fininho, com ilustrações em preto-e-branco, desfocadas.
Amei a maioria dessas mulheres que vinham e moravam tempos em casa, viravam família. O cheiro dos seus quartos era da mesma mistura de perfume barato, pó de arroz Lady, pronunciado Ladi, com acento no i, batom, uma ou outra toalhinha bordada, uma figura de santo em papel pregada na parede, revistas velhas, pasta de alisar cabelo, cigarro, às vezes, e uma dor muito doída e inexplicável quando sinto esse cheiro, até hoje.
Onde estará Inácia? Loura e de olhos azuis como uma holandesa, teimosa e obsessiva. Quando acabava de arrumar a cozinha do jantar, levava para a lavanderia a grade do fogão, para que um eventual cafezinho não o manchasse. Sexta-feira era o seu dia de fazer biscoitos. Ninguém mandava, biscoito já estava fora de moda nessa época, mas ela elaborava rosquinhas, tranças, bolas achatadas, pingos, todos com a receita num caderno com o título "Biscoitos da Inácia". Da Cleide não posso esquecer, devia ser pouco mais velha que eu, olhos estatelados, cabelo pixaim, boca maltratada e um carinho e envolvimento total pela casa. Me levava de mãos dadas para a escola, subíamos a Peixoto Gomide, íngreme, em ziguezague, evitando as casas que tinham cachorro e que conhecíamos na perfeição.
Um dia, ela soube que morrera um anjinho e resolveu parar na casa para os pêsames. A porta semiaberta, entramos, e ninguém nos recebeu. Na sala, o caixão pequenino, sobre uma estrutura de pernas em X. Ficamos na ponta dos pés, trêmulas, para espiar o que era estar morto. E com certeza nos apoiamos nas bordas, pois o bebê desabou no chão, com flores e tudo. Nunca se viu canelas pretinhas e branquelas correrem tanto em linha reta por aquela ladeira.
Foi sobre esse cimento de quase-meninas, que nós, mulheres dos anos 50, estudamos, casamos, criamos nossos filhos, sem perceber muito bem que sem elas não teria havido revolução alguma de exaltadas feministas. Mas parecia tudo certo, e até que era.

ninahorta@uol.com.br


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