São Paulo, Sexta-feira, 21 de Maio de 1999
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Salman Rushdie inspirou "eXistenZ"

CHRISTOPHER MICHAUD
da "Reuter", em Nova York

Depois de fazer um filme sobre pessoas cujo fetiche sexual são acidentes de carro, qual seria seu próximo passo?
Se você fosse David Cronenberg, retornaria a suas raízes: os gigantescos insetos de "Naked Lunch", as sondagens corpóreas de "Dead Ringers" ou a fusão de tecnologia e anatomia humana de "Videodrome". O novo filme de Cronenberg, "eXistenZ", é uma fantasia desvairada sobre realidade virtual.
"Começo a achar que o melhor é ver meus filmes como capítulos em um único grande livro", disse o diretor canadense em entrevista à agência de notícias "Reuter". "Cada um se liga aos outros de alguma maneira, e todos se refletem."
Cronenberg dirigiu o polêmico e premiado "Crash", no qual Holly Hunter, James Spader e Rosanna Arquette representaram pessoas que se excitam sexualmente com acidentes de carros.
As referências de Cronenberg são o corpo humano, a tecnologia, a percepção e natureza da existência humana, ou "eXistenZ".
"Não é por nada que o filme se chama "eXistenZ'", disse. Alguns críticos qualificaram seu trabalho mais recente como o "Matrix" (sucesso recente de bilheteria) do homem pensante.
"O filme expressa a visão que o existencialista tem da vida -ou seja, que ela não tem outro sentido além do que damos a ela. Sou totalmente ateu. Se preciso que a vida tenha sentido, tenho que criá-lo."
Jennifer Jason Leigh é Allegra Geller, criadora de jogos de realidade virtual, alvo de um complô para assassiná-la, urdido pelas companhias rivais do setor tecnológico e pelos chamados "realistas", adversários do mundo fantástico. Quando a base do jogo "eXistenZ", que ela criou, é danificada, ela e o executivo de marketing são obrigados a entrar no jogo para reparar os danos.
O filme tem a marca registrada de Cronenberg: a fusão da tecnologia (o cabo) com o orgânico (o cordão umbilical), a "bioporta".
Essa "bioporta" é ligada na espinha dorsal de quem vai jogar o game. A fonte de energia é o sistema nervoso, o metabolismo e a energia vital do jogador. O cartucho do game é o cruzamento entre um rim e um seio.
Qual foi a intenção do cineasta, desta vez?
"É verdade que gosto de provocar", disse. "Também é verdade que tento transmitir uma mensagem, de forma não muito sutil. Me irrito profundamente com o senso de estética vigente. Passo meu tempo tentando modificá-lo."
Isso explica a cena da cirurgia em "eXistenZ", quando o cartucho do game é aberto e examinado, numa operação sangrenta e nada asséptica. "Acho espantosa a idéia de que a maioria das pessoas reage com repulsa à visão do interior de seus próprios corpos."
O diretor não quer passar uma mensagem tão simples quanto a do perigo da tecnologia que foge ao controle humano. Pelo contrário, fala dela com afeição. "A tecnologia somos nós... ela é a expressão pura da vontade criativa humana. Vem de nós mesmos. O fato de que seja perigosa ou destrutiva vem apenas refletir o que há em nós mesmos."
Cronenberg disse que para escrever "eXistenZ" inspirou-se na saga do escritor Salman Rushdie, que teve sentença de morte decretada pelo aiatolá Khomeini, do Irã, por ter escrito "Os Versos Satânicos".
O autor, nascido na Índia, "escreveu dentro da tradição liberal ocidental, com liberdade de expressão, ironia e metáfora, mas o livro foi recebido por uma tradição fundamentalista que não admite nada disso. Eram duas realidades diferentes, cada uma das quais comanda lealdades muito fortes, e o que aconteceu foi um choque entre elas. Neste filme discuto tudo isso", disse Cronenberg.


Tradução de Clara Allain


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