São Paulo, Sexta-feira, 21 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
Uma noite solitária passada em Tóquio

É uma porção de edifícios cercada de edifícios por todos os lados. Há faixas verticais em que estão pintadas aquelas letrinhas complicadas que aparentemente não fazem som, mas estão densas de sentidos e significados. Jogo fora o pequeno vocabulário que me deram -não adianta entendê-los. Tampouco me fazem falta.
Bom, há o chá, e é um ritual complicadíssimo tomá-lo nestas bandas eternizadas pela tradição e pelos turistas que chegam ávidos de chá e simpatia. Pois o japonês oferece chá e simpatia em linha de produção industrial. Fica em aberto se o chá é uma simpatia ou se a simpatia é uma forma de chá.
Demora muito tomar e preparar o chá. À minha frente, mulheres de quimonos coloridos, com gestos que são metade dança, metade cerimônia religiosa, preparam a bebida numa lentidão que enerva. Dizem que há poesia e mistério nessa lentidão, mas eu queria ver essas japonesas prepararem uma feijoada.
Se para fazerem um chá elas demoram o espaço de uma eternidade, procuro imaginar quantas eternidades não demoraria o preparo de um vatapá. Afugento esta idéia como agressão ao delicado gestual que me servem -alguém definiu aquele ritual como um balé de borboletas complacentes.
Mas o chá finalmente está pronto e não é agradável tomá-lo. Tem um gosto paradoxal, de formiga e coisa santificada, uma espécie de sacramento oriental -e em matéria de sacramentos prefiro os de nossa esculhambada cultura cristã-ocidental.
À tardinha, para matar o tempo, vou a uma sauna local. Levo um susto dos diabos vendo uma porção de japoneses nus em pêlo. O vapor é denso, mas distingo caras e bundas feitas em série. Olham-me as viandas tropicais e na certa me desprezam. Sinto-me como um mocho num ninho de pombos -e tenho a certeza de que os meus companheiros de calor e suor devem ter espanto igual.
Há um som em surdina que toca Cole Porter. Não faz muito sentido, é um ritmo ocidental demais. De repente, reconheço um trecho da "Butterfly", em orquestração adaptada para instrumentos locais, a mistura é boa, embora extravagante.
Além de chás, saunas e borboletas, há os bonzos ou coisa que o valha. É difícil encontrar um deles pelas ruas, aliás, não vi nenhum, e o turismo pouco a pouco está também industrializando esses estranhos personagens. É preciso apelar para uma agência especializada para se ver um, tão produzido como um índio de verdade aqui pelas nossas bandas.
Mas eles existem, ou existiram. Dizem que são furibundos -pelo menos, na citada ópera de Puccini, o bonzo que comparece é furibundíssimo, amaldiçoa por 999 anos a sobrinha que está se entregando a um oficial da Marinha americana. Já me disseram que as bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki foram por causa dessa maldição do tio bonzo da Butterfly.
E há a vida noturna. Com Hamburgo, Las Vegas e Nilópolis, é a cidade da mais feérica vida noturna do mundo. O japonês continua na fase do encantamento com as mazelas ocidentais. Apesar da decantada luxúria milenar, as meninas apelam para caras e bocas que aprenderam nos filmes pornôs. Um guia me explica que se trata de uma forma de contracultura. Bem, eu pensava que era outra coisa.
Mas os espetáculos, os nus e a prostituição são coisas velhas como o mundo e como a China -embora eu esteja no Japão. Para o forasteiro inculto como eu, não há diferença entre chinês e japonês em vários assuntos. Ver suas girls ou ouvir suas piadas -para mim é quase a mesma coisa.
Há muitas mesuras nesta terra. E bêbados, também. No bar do hotel há um congresso sobre complicações do parto prematuro. À noite, vou tomar estranha beberagem num local americanizado. Encontro um congressista ocidental (de Michigan) caído no chão, na bebedeira mais crua desta nascente terra.
Retiram o homem e o botam no elevador -um elevador destinado a cargas abomináveis. Fico pensando se não vão jogar o homem no rio da Guarda, método adotado há tempos aqui no Rio. Tentei ajudá-lo, providenciei um táxi, dei o nome do hotel ao motorista. Um porteiro me ajudara naquela operação e me estende a mão para a gorjeta.
Aqui no Japão aceitam gorjetas por qualquer serviço, até mesmo por aqueles que não são prestados. É a terra das intenções -e uma boa intenção merece gorjeta e a má intenção merece um suicídio, aqui chamado de haraquiri.
De volta ao quarto, sozinho com os meus bonzos, tento praticar o haraquiri. Há um punhal pendurado na porta do banheiro, equivalendo ao sal de fruta que nos hotéis ocidentais é colocado em cima do frigobar. Experimento a ponta da lâmina, é afiada e doce, como tudo aqui é doce e afiado. Descubro então que a tal beberagem me deixou grogue e adio o meu haraquiri, na esperança de que a morte me venha mais súbita e merecida, em momento de maior lucidez e culpa.


Texto Anterior: "Os impostores": Stanley Tucci dirige comédia em ritmo de filme mudo
Próximo Texto: Show: Tom Zé agrada com "portunglês" em NY
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.