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CARLOS HEITOR CONY
Uma noite solitária passada em Tóquio
É uma porção de edifícios cercada de edifícios por todos os
lados. Há faixas verticais em
que estão pintadas aquelas letrinhas complicadas que aparentemente não fazem som,
mas estão densas de sentidos e
significados. Jogo fora o pequeno vocabulário que me deram
-não adianta entendê-los.
Tampouco me fazem falta.
Bom, há o chá, e é um ritual
complicadíssimo tomá-lo nestas bandas eternizadas pela
tradição e pelos turistas que
chegam ávidos de chá e simpatia. Pois o japonês oferece chá e
simpatia em linha de produção
industrial. Fica em aberto se o
chá é uma simpatia ou se a simpatia é uma forma de chá.
Demora muito tomar e preparar o chá. À minha frente,
mulheres de quimonos coloridos, com gestos que são metade
dança, metade cerimônia religiosa, preparam a bebida numa lentidão que enerva. Dizem
que há poesia e mistério nessa
lentidão, mas eu queria ver essas japonesas prepararem uma
feijoada.
Se para fazerem um chá elas
demoram o espaço de uma
eternidade, procuro imaginar
quantas eternidades não demoraria o preparo de um vatapá. Afugento esta idéia como
agressão ao delicado gestual
que me servem -alguém definiu aquele ritual como um balé
de borboletas complacentes.
Mas o chá finalmente está
pronto e não é agradável tomá-lo. Tem um gosto paradoxal, de
formiga e coisa santificada,
uma espécie de sacramento
oriental -e em matéria de sacramentos prefiro os de nossa
esculhambada cultura cristã-ocidental.
À tardinha, para matar o
tempo, vou a uma sauna local.
Levo um susto dos diabos vendo uma porção de japoneses
nus em pêlo. O vapor é denso,
mas distingo caras e bundas
feitas em série. Olham-me as
viandas tropicais e na certa me
desprezam. Sinto-me como um
mocho num ninho de pombos
-e tenho a certeza de que os
meus companheiros de calor e
suor devem ter espanto igual.
Há um som em surdina que
toca Cole Porter. Não faz muito
sentido, é um ritmo ocidental
demais. De repente, reconheço
um trecho da "Butterfly", em
orquestração adaptada para
instrumentos locais, a mistura
é boa, embora extravagante.
Além de chás, saunas e borboletas, há os bonzos ou coisa que
o valha. É difícil encontrar um
deles pelas ruas, aliás, não vi
nenhum, e o turismo pouco a
pouco está também industrializando esses estranhos personagens. É preciso apelar para
uma agência especializada para se ver um, tão produzido como um índio de verdade aqui
pelas nossas bandas.
Mas eles existem, ou existiram. Dizem que são furibundos
-pelo menos, na citada ópera
de Puccini, o bonzo que comparece é furibundíssimo, amaldiçoa por 999 anos a sobrinha
que está se entregando a um
oficial da Marinha americana.
Já me disseram que as bombas
jogadas em Hiroshima e Nagasaki foram por causa dessa
maldição do tio bonzo da Butterfly.
E há a vida noturna. Com
Hamburgo, Las Vegas e Nilópolis, é a cidade da mais feérica
vida noturna do mundo. O japonês continua na fase do encantamento com as mazelas
ocidentais. Apesar da decantada luxúria milenar, as meninas
apelam para caras e bocas que
aprenderam nos filmes pornôs.
Um guia me explica que se trata
de uma forma de contracultura.
Bem, eu pensava que era outra
coisa.
Mas os espetáculos, os nus e a
prostituição são coisas velhas
como o mundo e como a China
-embora eu esteja no Japão.
Para o forasteiro inculto como
eu, não há diferença entre chinês e japonês em vários assuntos. Ver suas girls ou ouvir suas
piadas -para mim é quase a
mesma coisa.
Há muitas mesuras nesta terra. E bêbados, também. No bar
do hotel há um congresso sobre
complicações do parto prematuro. À noite, vou tomar estranha beberagem num local americanizado. Encontro um congressista ocidental (de Michigan) caído no chão, na bebedeira mais crua desta nascente terra.
Retiram o homem e o botam
no elevador -um elevador destinado a cargas abomináveis.
Fico pensando se não vão jogar
o homem no rio da Guarda, método adotado há tempos aqui
no Rio. Tentei ajudá-lo, providenciei um táxi, dei o nome do
hotel ao motorista. Um porteiro
me ajudara naquela operação e
me estende a mão para a gorjeta.
Aqui no Japão aceitam gorjetas por qualquer serviço, até
mesmo por aqueles que não são
prestados. É a terra das intenções -e uma boa intenção merece gorjeta e a má intenção merece um suicídio, aqui chamado
de haraquiri.
De volta ao quarto, sozinho
com os meus bonzos, tento praticar o haraquiri. Há um punhal pendurado na porta do banheiro, equivalendo ao sal de
fruta que nos hotéis ocidentais é
colocado em cima do frigobar.
Experimento a ponta da lâmina, é afiada e doce, como tudo
aqui é doce e afiado. Descubro
então que a tal beberagem me
deixou grogue e adio o meu haraquiri, na esperança de que a
morte me venha mais súbita e
merecida, em momento de
maior lucidez e culpa.
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