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CRÍTICA
Em "God Is Not Great", ateísmo de ensaísta vira nova religião
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
O que seria de nós sem Deus?
A pergunta é antiga, a urgência
é recente: no dia 11 de setembro
de 2001, as Torres Gêmeas desabavam perante os olhos incrédulos do mundo. E entre os
responsáveis pelo massacre,
Deus também estava na lista.
Se a religião não existisse, o fanatismo jamais teria voado até
Nova York. A religião destrói
tudo. A história da religião é a
história da desgraça humana.
Christopher Hitchens acredita que sim, em "God Is Not
Great". Esclarecimento: gosto
de Hitchens e há vários anos
que acompanho o bicho. Não é
fácil: são duas dezenas de livros
e incontáveis colunas para incontáveis publicações de elite
(da "New Statesman" à "Vanity
Fair", da "Slate" ao "TLS").
Depois de Mencken e Gore
Vidal, Hitchens tem a raríssima
qualidade de conciliar profundidade teórica com um destrutivo e impressivo sentido de
humor. Irresistível, não?
Sem dúvida. Irresistível mas
falível, sobretudo quando a
profundidade não acompanha
o humor. Acontece com "God Is
Not Great", que provoca riso e
frustração em qualquer leitor
informado. O riso está na iconoclastia de Hitchens (Maomé
era epilético? Jesus morreu pelos pecados dos homens mas
ressuscitou ao terceiro dia?),
uma iconoclastia que procura
mostrar duas coisas: primeiro,
que a existência de Deus é uma
impossibilidade; e, segundo,
que as religiões organizadas são
uma malignidade. A frustração
está na natureza pouco convincente dos argumentos.
Para Hitchens, a existência
de Deus é uma impossibilidade
pela razão bem simples de que
foram os homens a criar o divino, e não o contrário.
Basta olhar em volta: como
conciliar a idéia de um criador
perfeito com o estado imperfeito do mundo?
Na verdade, um mundo imperfeito não é incompatível
com um criador perfeito se a liberdade humana é, simultaneamente, uma dádiva e um
princípio de indeterminação.
Se Hitchens tivesse lido santo
Agostinho, saberia disso.
E sobre um Deus criado pela
imaginação humana, a tese, que
é uma repetição do trio maravilha (Feuerbach, Marx, Freud),
não passa de uma profissão de
fé, impossível de prova racional. Não é preciso ser crente para subscrever o truísmo: é impossível provar a existência, ou
a inexistência, de Deus.
Verdade que o objetivo de
Hitchens não é apenas esse. A
existência de Deus é um pormenor quando existem homens que matam em Seu nome. Matam em Belfast. Em Beirut. Em Belgrado. Em Belém.
Em Bagdá. E apenas para ficarmos pela letra "B", como diz
Hitchens com típico humor.
Infelizmente, e uma vez
mais, o humor não basta. Não
basta porque não é possível
condenar toda a religião organizada tendo em conta as suas
expressões mais extremas. Porque tudo pode ser perigoso
quando levado ao extremo: a fé;
a raça; a nação; o amor; o futebol; a estupidez. Além disso, os
problemas que Hitchens traz
na sua lista "B" não são apenas
explicáveis pela religião. Só um
ingênuo acredita, por exemplo,
que o problema israelo-palestino é uma contenta religiosa entre extremistas. A história, a
política e as ideologias que sacudiram o Oriente Médio (desde, pelo menos, a queda do Império Otomano) tiveram uma
palavra maior.
Soluções? Para começar, Hitchens não aceita a objeção esperada de que os regimes que
aboliram a religião acabaram
por descer a níveis impensáveis
de desumanidade. Desde logo
porque, para o autor, esses regimes não aboliram a religião;
apenas a transmutaram numa
ideologia servida por capacidade tecnológica letal.
Ainda que isso fosse verdade
(não é), esse seria um argumento a favor da manutenção de
uma religião tradicional (como
Burke, no século 18, ou Tocqueville, no século 19, ou Aron, já
no século 20, sublinharam). A
religião tradicional é conhecida. A transmutação gera o desconhecido.
Para terminar, Hitchens lança um convite para um novo
"iluminismo", capaz de dispensar a religião e alimentar a alma
humana com arte e literatura.
É uma boa proposta, sem dúvida, mas talvez fosse interessante saber que tipo de arte e literatura Hitchens aconselha aos
novos iluminados. Razão simples: a história da arte no Ocidente é indissociável da herança judaico-cristã que a contaminou. Eu, pessoalmente, só
vejo um caminho: lançar na fogueira todas as obras que transportem resquícios religiosos.
Porque esse é o problema do
panfleto de Hitchens: preocupado em derrubar a religião, o
seu ateísmo converte-se numa
nova forma de religião. Dogmática, intolerante. E, como em
todos os extremismos, capaz de
conceder a Deus uma importância de vida ou morte. Sobretudo a um Deus em que não se
acredita. É a suprema ironia.
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