São Paulo, quarta-feira, 21 de agosto de 2002

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MARCELO COELHO

Sobre o direito de entrar e sair

Li outro dia na Folha que há empresas especializadas na construção de "bunkers" residenciais. Mesmo quem mora em apartamento pode se sentir mais seguro dispondo de um quarto blindado, que sirva como refúgio em caso de assalto, ataque de sequestradores, invasão de sem-teto ou, quem sabe, momentos agudos de crise conjugal.
Instalar um desses cômodos pode custar até R$ 400 mil, diz a reportagem. Não deixa de ser bom negócio, argumenta um empresário do ramo, já que "muitas vezes o resgate custa mais do que isso".
Achei o argumento engraçado, pois toda a idéia do "bunker" não deixa de ser um tipo de auto-sequestro. Tornou-se lugar-comum dizer que, para se proteger dos criminosos, o cidadão fica atrás de grades. Agora, o que se reproduz imaginariamente não é mais a punição, mas o próprio crime.
Ou talvez seja a imagem de um presídio de segurança máxima o que se imite. Coisa mais pobre, aquele portão com velhas grades de ferro, lembrando uma cadeia de faroeste. O modelo se aperfeiçoa: em todo lugar, há portas de vidro blindado conjugadas, como nos filmes, em que uma só abre quando a outra já fechou. Câmeras de vídeo. E os próprios vigias de prédio, antes vestidos como guardas, hoje ficam de celular em punho, de paletó e gravata, como agentes federais.
Mesmo os carros, com insul-film, quando não totalmente blindados, parecem coisa de gângster. E uma dessas blazers ou pajeros, se for preta, com os vidros escuros, acaba parecendo um camburão.
Quantos filtros! Você não fala mais com ninguém diretamente. Às vezes, acho que nem é uma questão de segurança. Por exemplo: essas salas de cinema multiplex. Não é possível que temam assalto ali. Já não basta o shopping estar cheio de guardas? Por que será que a bilheteria tem aquele sistema de microfoninho, que eu nem sei direito onde fica, e começo a gritar o filme que eu quero ver?
Que filme, aliás? "Segurança Máxima"? "Fuga de Alcatraz"? "O Quarto do Pânico"? Vai ver que é isso: trata-se de viver como em Hollywood. O fato de sentirmos medo diante de riscos reais não impede que a fantasia corra solta -se é que cabe a expressão.
O "bunker" doméstico também sugere outra coisa. Além de ser um cativeiro dentro de casa -uma espécie de "personal cativeiro"-, é também uma versão aperfeiçoada do velho cofre. Antigamente, as pessoas guardavam jóias no cofre embutido na parede. E nunca usavam as jóias. É mais racional, quem sabe, ficarem elas próprias no cofre, podendo então usar as jóias lá dentro.
Claro que guardar as coisas num banco também não oferece grande segurança. É significativo que saia uma reportagem sobre os "bunkers" num período em que se ouvem relatos aterrorizantes sobre o que acontece com nossos vizinhos, a saber, Argentina e Uruguai. O "corralito", ou sequestro dos depósitos bancários, não deixa de ser um sequestro pessoal também: noticia-se que muitos argentinos tentam ir para outro país, mas não dispõem de dólares para pagar não o resgate, mas a passagem aérea.
Na vida cotidiana, a gente acaba não reparando, mas imagino que, se alguém fosse transportado da década de 50 para os dias de hoje, ficaria espantado com as restrições ao direito de ir e vir que se estabeleceram numa cidade como São Paulo. Nem falo do trânsito. Ao mesmo tempo em que tudo parece ser muito mais rápido (microondas, injeção eletrônica, teclado do telefone, caixa automático), não há porta que se cruze facilmente. É preciso digitar a senha, esvaziar os bolsos, falar pelo interfone, pedir autorização para entrar e sair.
E há autorização também para falar e escutar. Foi-se o tempo em que bastava "discar", como se dizia, o número do telefone e, pronto, atendiam. Há o identificador de chamadas, por exemplo.
Novos filtros e barreiras se antepõem entre "o cliente" e aquilo que, aliás, não existia, que é "o atendimento ao cliente". Todos conhecemos a rotina do "tecle dois para isto e aquilo, tecle três para solicitar não sei o que, tecle quatro..." etc. Mas também faz parte do mesmo fenômeno a história de perguntarem "de onde?", quando a gente diz quem a gente é.
Não adianta responder "aqui é Fulano"; presume-se que você pertença a alguma instituição, a alguma empresa jurídica. Nos tempos da Guerra Fria, dizia-se que nos países comunistas "o indivíduo não existe". A diferença, aqui, talvez seja que o indivíduo não foi absorvido pelo Estado, mas pela corporação.
Num sentido específico do termo, as coisas na verdade se tornaram mais "corporativas" com o neoliberalismo. Tome-se o exemplo das empresas "terceirizadas" -os serviços de faxina ou as próprias empresas de segurança. A faxineira de um escritório, por exemplo, antes tinha nome, era empregada ali, era a mesma pessoa; com a terceirização, ela desaparece atrás do uniforme da firma que presta esses serviços.
Ironicamente, agora ela passa a usar um crachá em que está escrito o seu primeiro nome, debaixo da logomarca da empresa. E a lógica é essa mesma: ela é Fulana e, se no telefone alguém perguntar "de onde?", ela poderá responder olhando o crachá.
Outros, mais irritados, poderão retrucar: "de onde?! do meu "bunker", ora essa". Ou "do presídio tal e tal". Ninguém vai achar estranho.



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