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MARCELO COELHO
Sobre o direito de entrar e sair
Li outro dia na Folha que
há empresas especializadas
na construção de "bunkers" residenciais. Mesmo quem mora em
apartamento pode se sentir mais
seguro dispondo de um quarto
blindado, que sirva como refúgio
em caso de assalto, ataque de sequestradores, invasão de sem-teto
ou, quem sabe, momentos agudos
de crise conjugal.
Instalar um desses cômodos pode custar até R$ 400 mil, diz a reportagem. Não deixa de ser bom
negócio, argumenta um empresário do ramo, já que "muitas vezes
o resgate custa mais do que isso".
Achei o argumento engraçado,
pois toda a idéia do "bunker" não
deixa de ser um tipo de auto-sequestro. Tornou-se lugar-comum
dizer que, para se proteger dos
criminosos, o cidadão fica atrás
de grades. Agora, o que se reproduz imaginariamente não é mais
a punição, mas o próprio crime.
Ou talvez seja a imagem de um
presídio de segurança máxima o
que se imite. Coisa mais pobre,
aquele portão com velhas grades
de ferro, lembrando uma cadeia
de faroeste. O modelo se aperfeiçoa: em todo lugar, há portas de
vidro blindado conjugadas, como
nos filmes, em que uma só abre
quando a outra já fechou. Câmeras de vídeo. E os próprios vigias
de prédio, antes vestidos como
guardas, hoje ficam de celular em
punho, de paletó e gravata, como
agentes federais.
Mesmo os carros, com insul-film, quando não totalmente
blindados, parecem coisa de
gângster. E uma dessas blazers ou
pajeros, se for preta, com os vidros
escuros, acaba parecendo um
camburão.
Quantos filtros! Você não fala
mais com ninguém diretamente.
Às vezes, acho que nem é uma
questão de segurança. Por exemplo: essas salas de cinema multiplex. Não é possível que temam
assalto ali. Já não basta o shopping estar cheio de guardas? Por
que será que a bilheteria tem
aquele sistema de microfoninho,
que eu nem sei direito onde fica, e
começo a gritar o filme que eu
quero ver?
Que filme, aliás? "Segurança
Máxima"? "Fuga de Alcatraz"?
"O Quarto do Pânico"? Vai ver
que é isso: trata-se de viver como
em Hollywood. O fato de sentirmos medo diante de riscos reais
não impede que a fantasia corra
solta -se é que cabe a expressão.
O "bunker" doméstico também
sugere outra coisa. Além de ser
um cativeiro dentro de casa
-uma espécie de "personal cativeiro"-, é também uma versão
aperfeiçoada do velho cofre. Antigamente, as pessoas guardavam
jóias no cofre embutido na parede. E nunca usavam as jóias. É
mais racional, quem sabe, ficarem elas próprias no cofre, podendo então usar as jóias lá dentro.
Claro que guardar as coisas
num banco também não oferece
grande segurança. É significativo
que saia uma reportagem sobre
os "bunkers" num período em
que se ouvem relatos aterrorizantes sobre o que acontece com nossos vizinhos, a saber, Argentina e
Uruguai. O "corralito", ou sequestro dos depósitos bancários,
não deixa de ser um sequestro
pessoal também: noticia-se que
muitos argentinos tentam ir para
outro país, mas não dispõem de
dólares para pagar não o resgate,
mas a passagem aérea.
Na vida cotidiana, a gente acaba não reparando, mas imagino
que, se alguém fosse transportado
da década de 50 para os dias de
hoje, ficaria espantado com as
restrições ao direito de ir e vir que
se estabeleceram numa cidade como São Paulo. Nem falo do trânsito. Ao mesmo tempo em que tudo parece ser muito mais rápido
(microondas, injeção eletrônica,
teclado do telefone, caixa automático), não há porta que se cruze facilmente. É preciso digitar a
senha, esvaziar os bolsos, falar pelo interfone, pedir autorização
para entrar e sair.
E há autorização também para
falar e escutar. Foi-se o tempo em
que bastava "discar", como se dizia, o número do telefone e, pronto, atendiam. Há o identificador
de chamadas, por exemplo.
Novos filtros e barreiras se antepõem entre "o cliente" e aquilo
que, aliás, não existia, que é "o
atendimento ao cliente". Todos
conhecemos a rotina do "tecle
dois para isto e aquilo, tecle três
para solicitar não sei o que, tecle
quatro..." etc. Mas também faz
parte do mesmo fenômeno a história de perguntarem "de onde?",
quando a gente diz quem a gente
é.
Não adianta responder "aqui é
Fulano"; presume-se que você
pertença a alguma instituição, a
alguma empresa jurídica. Nos
tempos da Guerra Fria, dizia-se
que nos países comunistas "o indivíduo não existe". A diferença,
aqui, talvez seja que o indivíduo
não foi absorvido pelo Estado,
mas pela corporação.
Num sentido específico do termo, as coisas na verdade se tornaram mais "corporativas" com o
neoliberalismo. Tome-se o exemplo das empresas "terceirizadas"
-os serviços de faxina ou as próprias empresas de segurança. A
faxineira de um escritório, por
exemplo, antes tinha nome, era
empregada ali, era a mesma pessoa; com a terceirização, ela desaparece atrás do uniforme da firma que presta esses serviços.
Ironicamente, agora ela passa a
usar um crachá em que está escrito o seu primeiro nome, debaixo
da logomarca da empresa. E a lógica é essa mesma: ela é Fulana e,
se no telefone alguém perguntar
"de onde?", ela poderá responder
olhando o crachá.
Outros, mais irritados, poderão
retrucar: "de onde?! do meu "bunker", ora essa". Ou "do presídio tal
e tal". Ninguém vai achar estranho.
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