São Paulo, Quinta-feira, 21 de Outubro de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
O amor dos pais não é panacéia

O FBI acaba de tornar público o relatório do crime nos EUA em 1998. A curva desce pelo sétimo ano consecutivo.
Qual é o segredo? A boa conjuntura econômica. Mais policiais na rua e algum controle das armas. A volta das classes médias para os centros urbanos, o revival da vida comunitária e um cuidado com a estética do espaço público. Também, a epidemia do crack perdeu vitalidade. Em suma, um concurso de circunstâncias. Mas seria bom chegar a uma compreensão mais exata das causas em jogo.
Ora, em agosto deste ano, dois criminologistas (John Donahue, da escola de direito de Stanford, e Steven Levitt, da Universidade de Chicago) avançaram uma nova hipótese com "Aborto Legalizado e Crime". O texto se funda em duas premissas:
1) Por definição, a legalização do aborto faz com que nasçam menos crianças não desejadas.
2) Crianças não desejadas são facilmente vítimas de abuso e negligência. Décadas de pesquisa parecem confirmar que crianças maltratadas tendem a adotar com mais frequência condutas criminosas.
A essas premissas são acrescentadas algumas constatações. A legalização do aborto nos EUA foi em 1973. A queda dos índice de criminalidade começou aproximadamente 18 anos depois (ou seja, logo quando deveria chegar ao ápice a eventual atividade criminosa da primeira geração de jovens nascidos depois de 73).
Os cinco Estados que adotaram a legalização três anos antes dos outros conheceram uma diminuição do índice também com três anos de antecedência. Enfim, os Estados onde se praticaram mais abortos nos anos 70 são aqueles onde a diminuição do índice de criminalidade nos anos 90 foi mais marcante. Levitt e Donahue consideram que essas observações estabelecem uma causalidade.
Como, nos EUA, ainda hoje a liberalização do aborto é um tema de violenta confrontação ideológica, a polêmica explodiu. Os autores chegaram a ser acusados de propor positivamente uma espécie de pena de morte pré-natal: não precisa matar os criminosos, melhor impedir que nasçam, ou seja, matá-los no útero.
No meio dessa gritaria foi possível ouvir objeções técnicas pertinentes. Mas pouco importam aqui os detalhes. De qualquer forma, o argumento dos dois criminologistas vai ficar como mais uma explicação do decréscimo da criminalidade americana nos 90.
É mais interessante notar que ninguém discutiu a segunda premissa do texto de Levitt e Donahue, segundo a qual nascer sem ser desejado implica abuso ou negligência parental e, portanto, mais condutas criminosas.
Para sustentar essa premissa só há pesquisas clínicas a posteriori. Ou seja, encontra-se um jovem que desviou; encorajado a falar das origens de sua perdição, o jovem aponta para os abusos dos quais foi vítima. É claro que isso não constitui nenhuma confirmação da idéia (que todos parecem acatar com unanimidade), segundo a qual o bem seria uma consequência do amor.
A premissa de Levitt e Donahue é sobretudo uma declaração de fé no poder do amor parental: será boa a criança que for esperada, desejada e, assim, chamada ao centro da atenção, dos projetos e dos afetos dos pais. Qualquer coisa abaixo disso é ameaçadora para o futuro da criança.
Acontece que já amamos nossas crianças narcisisticamente, por serem nossas imagens, nossos futuros e encarregadas de serem felizes onde a gente falhou. A isso se acrescenta uma verdadeira fé na potência de nosso amor. Como as coisas poderiam dar errado com a ajuda do amor dos pais e como dar certo em sua ausência? O narcisismo dos pais se torna assim um equivalente da graça divina.
Ora, o relatório do FBI aponta justamente para uma realidade um pouco diferente. Nos anos 90, o maior declínio da criminalidade foi entre os jovens negros dos centros urbanos. Os mesmos que foram as vítimas da epidemia de crack nos anos 80 parecem agora desistir e endireitar.
Levitt e Donahue diriam que os menos desejados foram abortados: sobraram os mais amados, que estão se dando melhor. No entanto, nesse mesmo período, não diminuiu a criminalidade entre jovens e adolescentes brancos em zonas rurais e suburbanas.
Ou seja, a criminalidade se obstina, o índice resiste logo no reduto tradicional das crianças amadas, onde a taxa de natalidade é mais baixa, onde cada família tem só uma criança, duas no máximo, pois é necessário se ocupar delas, amá-las com dedicação exclusiva. Descobre-se, assim, que o amor pode não ser uma panacéia. Ao contrário.
Talvez haja, como implicam Levitt e Donahue, uma patologia que o aborto evitaria. Talvez o desamor dos pais possa levar as crianças à criminalidade.
Há crianças de rua. Mas também há gangues nas ruas da Barra e dos Jardins. Em suma, há jovens criminosos que nunca foram candidatos ao aborto. Eles não sofrem por não serem ou terem sido desejados. Sofrem do oposto, dos excessos de um amor narcisista. Urge inventar novas maneiras de sermos pais; nem o abuso da indiferença nem a cantiga soprando nos ouvidos: sejam felizes, gozem a vida, vocês têm direito.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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