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CONTARDO CALLIGARIS
O amor dos pais não é panacéia
O FBI acaba de tornar público o
relatório do crime nos EUA em
1998. A curva desce pelo sétimo
ano consecutivo.
Qual é o segredo? A boa conjuntura econômica. Mais policiais na
rua e algum controle das armas. A
volta das classes médias para os
centros urbanos, o revival da vida
comunitária e um cuidado com a
estética do espaço público. Também, a epidemia do crack perdeu
vitalidade. Em suma, um concurso de circunstâncias. Mas seria
bom chegar a uma compreensão
mais exata das causas em jogo.
Ora, em agosto deste ano, dois
criminologistas (John Donahue,
da escola de direito de Stanford, e
Steven Levitt, da Universidade de
Chicago) avançaram uma nova
hipótese com "Aborto Legalizado
e Crime". O texto se funda em
duas premissas:
1) Por definição, a legalização
do aborto faz com que nasçam
menos crianças não desejadas.
2) Crianças não desejadas são
facilmente vítimas de abuso e negligência. Décadas de pesquisa
parecem confirmar que crianças
maltratadas tendem a adotar
com mais frequência condutas
criminosas.
A essas premissas são acrescentadas algumas constatações. A legalização do aborto nos EUA foi
em 1973. A queda dos índice de
criminalidade começou aproximadamente 18 anos depois (ou
seja, logo quando deveria chegar
ao ápice a eventual atividade criminosa da primeira geração de
jovens nascidos depois de 73).
Os cinco Estados que adotaram
a legalização três anos antes dos
outros conheceram uma diminuição do índice também com três
anos de antecedência. Enfim, os
Estados onde se praticaram mais
abortos nos anos 70 são aqueles
onde a diminuição do índice de
criminalidade nos anos 90 foi
mais marcante. Levitt e Donahue
consideram que essas observações
estabelecem uma causalidade.
Como, nos EUA, ainda hoje a liberalização do aborto é um tema
de violenta confrontação ideológica, a polêmica explodiu. Os autores chegaram a ser acusados de
propor positivamente uma espécie de pena de morte pré-natal:
não precisa matar os criminosos,
melhor impedir que nasçam, ou
seja, matá-los no útero.
No meio dessa gritaria foi possível ouvir objeções técnicas pertinentes. Mas pouco importam
aqui os detalhes. De qualquer forma, o argumento dos dois criminologistas vai ficar como mais
uma explicação do decréscimo da
criminalidade americana nos 90.
É mais interessante notar que
ninguém discutiu a segunda premissa do texto de Levitt e Donahue, segundo a qual nascer sem
ser desejado implica abuso ou negligência parental e, portanto,
mais condutas criminosas.
Para sustentar essa premissa só
há pesquisas clínicas a posteriori.
Ou seja, encontra-se um jovem
que desviou; encorajado a falar
das origens de sua perdição, o jovem aponta para os abusos dos
quais foi vítima. É claro que isso
não constitui nenhuma confirmação da idéia (que todos parecem acatar com unanimidade),
segundo a qual o bem seria uma
consequência do amor.
A premissa de Levitt e Donahue
é sobretudo uma declaração de fé
no poder do amor parental: será
boa a criança que for esperada,
desejada e, assim, chamada ao
centro da atenção, dos projetos e
dos afetos dos pais. Qualquer coisa abaixo disso é ameaçadora para o futuro da criança.
Acontece que já amamos nossas
crianças narcisisticamente, por
serem nossas imagens, nossos futuros e encarregadas de serem felizes onde a gente falhou. A isso se
acrescenta uma verdadeira fé na
potência de nosso amor. Como as
coisas poderiam dar errado com
a ajuda do amor dos pais e como
dar certo em sua ausência? O narcisismo dos pais se torna assim
um equivalente da graça divina.
Ora, o relatório do FBI aponta
justamente para uma realidade
um pouco diferente. Nos anos 90,
o maior declínio da criminalidade foi entre os jovens negros dos
centros urbanos. Os mesmos que
foram as vítimas da epidemia de
crack nos anos 80 parecem agora
desistir e endireitar.
Levitt e Donahue diriam que os
menos desejados foram abortados: sobraram os mais amados,
que estão se dando melhor. No
entanto, nesse mesmo período,
não diminuiu a criminalidade
entre jovens e adolescentes brancos em zonas rurais e suburbanas.
Ou seja, a criminalidade se obstina, o índice resiste logo no reduto tradicional das crianças amadas, onde a taxa de natalidade é
mais baixa, onde cada família
tem só uma criança, duas no máximo, pois é necessário se ocupar
delas, amá-las com dedicação exclusiva. Descobre-se, assim, que o
amor pode não ser uma panacéia. Ao contrário.
Talvez haja, como implicam Levitt e Donahue, uma patologia
que o aborto evitaria. Talvez o
desamor dos pais possa levar as
crianças à criminalidade.
Há crianças de rua. Mas também há gangues nas ruas da Barra e dos Jardins. Em suma, há jovens criminosos que nunca foram
candidatos ao aborto. Eles não
sofrem por não serem ou terem sido desejados. Sofrem do oposto,
dos excessos de um amor narcisista. Urge inventar novas maneiras
de sermos pais; nem o abuso da
indiferença nem a cantiga soprando nos ouvidos: sejam felizes,
gozem a vida, vocês têm direito.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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