São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA

SUSTANÇA

"Batuque na Cozinha" traz receitas como rabada e bobó de camarão

Comida para "encher" das "tias" da Portela vira livro

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Segundo a observação de um jovem portelense, há uma "cultura do excesso" na tradição dos subúrbios cariocas. A comida é um dos aspectos dessa cultura. As pastoras que cantam nos terreiros de samba também conhecem os segredos da culinária consistente -pesada ou "junkie food", na visão do esnobismo diet- que chega à mesa com fartura.
Parte desses segredos está revelada em "Batuque na Cozinha", livro do jornalista Alexandre Medeiros (com fotos de Bruno Veiga) sobre a vida e a obra (gastronômica) de quatro "tias" da Portela: Doca, Surica, Eunice e Neném. As três primeiras cantam na Velha Guarda da Portela, enquanto a última é viúva de Manacéa, um dos maiores compositores e líderes da escola.
Como escreve Medeiros nos perfis, as quatro enfrentaram muitas dificuldades na vida, mas nunca perderam o amor pelo samba e a generosidade na cozinha. Quando criança, Jilçária Cruz Costa, 71, a Doca, ia com a mãe no cais do porto pedir aos marinheiros sobras das refeições. Para ela, a comida não pode deixar lacunas no estômago.
"Eu não gosto de cozinhar salgadinhos, essas frituras. Fazem mal à saúde e não alimentam. Comida é para encher. Por isso eu gosto de fazer rabada, angu à baiana, sopa de entulho", diz Doca, 71, citando alguns dos pratos que estão no livro.
"Pratos", aliás, não é o termo adequado. São caldeirões, já que nas tradicionais festas suburbanas são fartas a freqüência, a bebida e a duração, o que exige equivalência da comida. No pagode que comanda desde 1981 -um dos mais famosos do Rio- Doca serve doses sem fim de sopa de ervilha. A receita está no livro.
Para estabelecer uma padronização, as medidas das receitas de "Batuque na Cozinha" prevêem entre dez e 15 bocas. Afinal, ninguém vai fazer um cozido como o ensinado por tia Neném para um jantar a dois. O mesmo vale para a "feijoada do Cafofo da Surica", servida nos famosos pagodes que a cantora sedia na vila onde mora, em Madureira.
"Já fiz até para 300 pessoas", orgulha-se Iranete Barcelos, a Surica, 63, que conta com a ajuda de uma equipe na cozinha. "Mas não acho que ensine a ninguém. Isso é um dom, a pessoa já nasce com ele", acredita. Doca pensa parecido: "Cada pessoa tem seu modo de temperar".
Bacalhoada, mocotó, galinha ao molho pardo, bobó de camarão e tripa lombeira são outros pratos (ou caldeirões) que estão no livro. Medeiros o concebeu enquanto acompanhava as filmagens do curta-metragem homônimo (de Anna Azevedo) e viu que as histórias rendiam mais do que 19 minutos. "As lembranças delas têm sabor de comida. Elas contam suas histórias remetendo a situações em que estavam cozinhando. Representam uma tradição que pode estar se perdendo", diz ele.


BATUQUE NA COZINHA Autor: Alexandre Medeiros. Editora: Senac Rio/ Casa da Palavra. Quanto: R$ 35.


Texto Anterior: Latão visita a irônica ambigüidade machadiana
Próximo Texto: Mundo gourmet: Girassol do Alentejo tem bacalhau a preços módicos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.