São Paulo, sábado, 21 de novembro de 1998

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Chega ao país a locomotiva Martin Amis


Sai no Brasil "Trem Noturno", primeiro policial do autor inglês; escritor fala à Folha sobre a obra e discute temas como o fracasso e sua amizade com o escritor foragido Salman Rushdie


CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Local

Quando tinha 24 anos, o inglês Martin Amis escreveu seu primeiro romance. Com "Rachel Papers", o filho do consagrado escritor sir Kingsley Amis ganhou o prêmio literário Somerset Maugham e um respeitável cacho de estigmas.
Ao mesmo tempo que virou porta-estandarte de uma geração de autores como Ian McEwan e Julian Barnes, se consagrou como representante de temas como inveja, pessimismo e fracasso e como trabalhador meticuloso de palavras.
Hoje, com o dobro da idade e mais de 15 livros publicados, incluindo o recém-lançado "Heavy Water" (contos), Amis ainda se defronta com os mesmos rótulos.
Em "Trem Noturno", publicado esta semana no Brasil, pela Cia. das Letras, o autor faz a tentativa mais consistente de sair dos trilhos sobre os quais vem rodando.
Mas seu primeiro livro policial não deixa dúvidas. Em meio a um cenário de romance "noir", com neblina e clichês como "Aquela noite eu estava só", circula a mesma "locomotiva" Martin Amis, que transporta temas como fracasso e crises existenciais.
Percorra a seguir alguns vagões do "Trem Noturno" do escritor, em entrevista dada por telefone, de sua casa, em Londres.

Folha - Em romances anteriores, o sr. criou uma ampla galeria de personagens fracassados, como o escritor Richard Tull, de "A Informação". Em "Trem Noturno", a personagem rica, bonita e bem-sucedida morre. Quem narra o livro é a detetive Mike Hoolihan, "desleixada, desprezível, nojenta...". Por que o elogio ao fracasso?
Martin Amis -
Sucesso, como tema, só combina com romances de aeroporto, com best sellers. O sucesso é vulgar e invariável. O fracasso é complexo e rico.
Folha - "Trem Noturno" parece criticar um inchaço da auto-estima. O sr. acha que o livro mostra que devemos nos amar menos?
Amis -
Não necessariamente. Mas acredito que "Trem Noturno" mostra que vivemos com nossas falhas, não com nossos sucessos. Somos frequentados pelo fracasso e não por êxitos.
Folha - Mas Martin Amis é o "muso da autodepreciação", como escreveu o crítico Ron Rosenbaum?
Amis -
Bem (risos). Ocasionalmente meus personagens passam por ondas de aversão a si mesmos, mas acho que encaro o fracasso de um modo quase cômico.
Folha - Por que o sr. escolheu uma mulher para o papel principal, de detetive, já que o personagem masculino é sempre central nos romances policiais?
Amis -
Diria que não escolhi. Aconteceu assim. No meu modo de entender, o suicídio (tema central do livro) é uma mulher. Para investigar uma suicida, foi inescapável que fosse outra mulher.
Folha - Mas Mike, a começar pelo nome, é quase um homem. Fala, se veste e se movimenta como tal.
Amis -
Ela é o mais masculino que uma mulher pode ser. Como policial, convive com temas masculinos como violência e assassinato. Tentei inserir uma mulher nesse meio. O resultado é que comprometi a feminilidade dela.
Folha - O livro é repleto de referências a procedimentos técnicos policiais, ao vocabulário das delegacias e aos hábitos dos investigadores. Como foi feita a pesquisa para conseguir esses dados?
Amis -
Eu não passei um ano com o time de Homicídio, mas li livros de muitos que fizeram isso. Não gosto de fazer muita pesquisa. A imaginação fica muito cheia, e não consigo criar.
Folha - Quanto existe de "exercício literário consciente" em seu livro, para usar as palavras de uma crítica do "The New York Times"?
Amis -
Não penso que seja um exercício. Não consigo acreditar que alguém faça literatura como um exercício. Estive envolvido neste livro como sempre estou.
Folha - E no que está "envolvido" hoje? O que está escrevendo?
Amis -
Um livro de memórias sobre minha relação com meu pai, a respeito do qual não gostaria de falar. Também escrevo uma novela.
Folha - Sobre o quê?
Amis -
Sobre o que é sobreviver hoje em dia. Esse é o tema de meus livros. O hoje e o futuro próximo.
Folha - E existe algum plano de, num futuro próximo, escrever algo sobre a "Terceira Via" (expressão que o premiê britânico, Tony Blair, usa para designar a guinada rumo ao centro da esquerda)?
Amis -
Penso que é quase impossível escrever com esse tema. Poderia pensar em uma novela sobre os padrões sociais modernos e seus efeitos, mas não posso imaginar que algum escritor consiga chegar a algum lugar com Blair e sua turma. Não se trata mais de política, hoje só existe administração.
Folha - Ian McEwan, que é da mesma geração de escritores britânicos que a sua, ganhou recentemente o importante Booker Prize. Julian Barnes, que foi até seu colega de escola, era outro dos concorrentes. Seriam sinais de amadurecimento de seu grupo literário?
Amis -
Penso que não somos um grupo. Não temos tanto em comum. Não somos gângsteres.
Folha - Seu pai não era gângster, mas tinha uma espécie de círculo literário (os "Angry Young Men", grupo inglês dos anos 50 de escritores e dramaturgos). Quem seriam os integrantes de seu círculo?
Amis -
Salman Rushdie, talvez Kazuo Ishiguro.
Folha - Consegue manter contato com Rushdie (ainda escondido, mesmo depois de o presidente do Irã, Mohammad Khatami, ter declarado que o governo não executará a sentença de morte que o escritor recebeu em 1989)?
Amis -
Sim, falei com ele dez minutos antes de lhe atender.
Folha - Ele está em Londres?
Amis -
Não posso dizer. Ele está sempre se mudando. Hoje em dia, ele até tem alguma liberdade, mas tem que continuar incógnito. Ele ainda não está no último estágio.
Folha - O sr. tem algum plano de vir ao Brasil?
Amis -
Não sei. Penso em visitá-los na primavera (nosso outono).
Folha - Sabe algo sobre o país?
Amis -
Acompanho a carreira de Gustavo Kuerten, que ganhou o Aberto da França (Amis joga tênis e sempre escreve sobre o esporte).



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