São Paulo, terça-feira, 22 de março de 2011

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Minha vida de estrela


A televisão não me faz justiça. Ou talvez faça, e eu, ao vivo e a cores, não passo de uma fraude


NOVE DA manhã. Estou sentado onde começo sempre os meus dias. No centro de Lisboa, uma pastelaria com nome francês que transformei em escritório informal. Uma xícara de café, os jornais sobre a mesa. Começo a leitura e reparo que uma donzela me olha fixamente do outro lado do espaço.
Subo o olhar, confirmo, confirma-se: bonitinha, insistente, insolente. Regresso à leitura e murmuro interiormente: mas quando será que essas fãs se acalmam, meu Deus?
A fã não se acalma. Aproxima-se, como um felino se aproxima da presa nas savanas de África. Para junto à minha mesa e ali fica, estátua silenciosa.
Eu volto a erguer o olhar, sorrio como sempre sorrio e aguardo: uma palavra, um cumprimento. Um autógrafo? A donzela faz a pergunta absurda ("Você é o João Pereira Coutinho, certo?"), eu respondo no mesmo espírito ("Da última vez que confirmei, era.")
Então ela abaixa-se ligeiramente: vejo o decote, sinto o perfume. Antecipo um beijo. Mas só se ouve uma declaração de amor: "O senhor deveria morrer de câncer".
Gostos não se discutem. Mas um excesso de educação condena-me à gentileza perpétua. "Muito obrigado, é demasiada generosidade da sua parte."
Erro meu. Quem deseja distribuir doenças pela humanidade não tem um sentido de humor apurado. O tom sobe, a fúria também, e os empregados já seguram a demente. "De câncer!", grita ela. "Por causa das coisas que diz!"
Que eu digo. Não que eu escrevo. Fatal. Dois anos atrás, aceitei ser comentarista-residente em um programa televisivo português. Todos os sábados, horário nobre, temas polêmicos. Eu, um rato de biblioteca, assim lançado às feras.
E as feras não fazem cerimônia. Eis a primeira lição: quando falamos em público, somos propriedade pública. O que autoriza todas as barbaridades.
Não há semana em que a minha altura, gordura, beleza ou destreza não sejam observadas, analisadas, comentadas. Como se eu não estivesse presente, apesar de estar sempre presente.
Sou mais baixo do que imaginavam. Ou sou mais alto, ainda não há consenso científico sobre a matéria. Sou também mais gordo, embora uma parte da doutrina garanta que sou mais magro. E, no capítulo facial e estético, a televisão não me faz justiça. Ou talvez faça, e eu, ao vivo e a cores, não passo de uma fraude, de um embrulho. De um bagulho.
Mas nem só de imagem vive o homem. Também existe o conteúdo. Se critico o governo, haverá sempre alguém na rua para me fazer mudar de ideias com verdadeiro espírito ecumênico. Se elogio, também. São minutos de preleção, como se a salvação da minha alma dependesse de uma mudança de opinião sobre o orçamento do Estado. "Veja bem", começam eles. E acabo eu.
Por vezes, personalizam: do orçamento do Estado para o estado dos respectivos orçamentos. É um rol de queixumes sobre um infortúnio pessoal, trivial, onde o filho e a vizinha também aparecem. Eu escuto o episódio como se fosse um perfeito prefeito. E prometo falar do assunto. Ou resolver o assunto, sei lá, meu cérebro já não funciona no fim.
Claro que, no meio de tudo, existem vantagens nessa história da "fama". É simpático ter uma mesa em um sábado à noite sem telefonema para reservar. Mas o pior vem a seguir: a confirmação empírica, aos olhos do mundo, de que nós também usamos garfo, faca, colher. Que mastigamos e engolimos. E, engraçado, que até sabemos colocar o guardanapo.
Isso quando estamos acompanhados. Quando estamos sós, jantamos rápido, virados para a parede, como colegiais mal comportados. E sempre a horas impróprias: mais cedo que os restantes, mais tarde que os restantes. A principal benesse da vida de estrela? O dinheiro vem em segundo lugar. Em primeiro, vem a proeza de ter aprendido a cozinhar.
Faço saladas, assados, guisados. E, como orgulhoso portuga, até já trato o bacalhau por tu: cozido ou frito, sou o sonho de qualquer donzela moderna. Desde que a donzela em questão não tenha sonhos em demasia, imaginando-me espirituoso o tempo inteiro. Uma crônica em forma humana.
Porque eu ronco e praguejo e aborreço. E juro pela minha honra que tenho péssimas ressacas.

jpcoutinho@folha.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Marcelo Coelho


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