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CARLOS HEITOR CONY
Pio 9º e João Paulo 2º, o drama de dois papas
Escrevo esta crônica antecipadamente. Quando sair
publicada, talvez já se conheça o
nome do novo papa -assunto
obrigatório dos últimos e próximos dias. Lendo a diversidade de
matérias na mídia, a nacional e a
internacional, pesquei um detalhe sem importância. Apesar de
agnóstico, sempre conservei pela
igreja a gratidão pelo que me ensinou e o respeito que ainda me
causa.
O detalhe é de fato irrelevante.
Li que o pontificado de João Paulo 2º foi o terceiro mais longo da
história, vindo depois do de Pedro
e o de Pio 11. Quanto a Pedro, não
deixa de ser uma gentileza considerá-lo papa. Na realidade, foi
mais do que isso, tendo recebido,
segundo os evangelhos, a missão
de chefiar a igreja nascente, missão que lhe foi conferida pelo fundador do cristianismo.
O próprio nome, "papa", que
significa "pai" em algumas línguas, já foi explicado como sigla
de "Petrus Apostolus, Princeps
Apostolorum" -Pedro Apóstolo,
Príncipe dos Apóstolos. Seu principal título foi mesmo o de apóstolo, o mais próximo a seu chefe, o
mais veemente e, em termos humanos, o mais surpreendente.
Quanto a Pio 11, o engano deve-se à numeração, tradicionalmente feita em algarismos romanos. O
erro está no "Pio XI", quando o
certo é "Pio IX". O primeiro governou a igreja de 1922 a 1939,
um pontificado de 17 anos.
Pio 9º, sim, foi papa durante 32
anos, de 1846 a 1878, num período
dos mais movimentados do século 19. Giovanni Maria Mastai
Ferretti, em que pesem diferenças
de tempo, estilo e personalidade,
aproxima-se de Karol Wojtyla
num ponto: o da perseverança na
linha dura, em termos de dogma
e moral, embora no resto seja o
oposto do papa recentemente falecido. Não foi popular nem querido, como João Paulo 2º. Chegou
a ser odiado.
Enfrentou uma época em que o
racionalismo e o culto da ciência
e da modernidade repudiavam
qualquer tipo de dogmatismo. No
plano político, que, no caso dele,
acabou sendo o plano pessoal, teve pela frente a unificação italiana, quando Garibaldi e Cavour,
um com as armas, outro com os
acordos internacionais, o reduziram à situação de prisioneiro,
condição que ele transmitiria a
seus sucessores, até justamente
Pio 11, quando o Estado italiano
reconheceu a soberania do Vaticano pelo Tratado de Latrão, de
1929, assinado com Mussolini
-que, aliás, detestava o papa de
plantão.
Se foi dramática a luta contra o
espírito da sua época (a Alemanha também se unificava e 1870
foi um ano marcado pela guerra
franco-prussiana), Pio 9º teve a
contestação de católicos que dele
exigiam aberturas na moral e no
dogma, tal como aconteceu agora, com João Paulo 2º. Produziu
dois documentos que foram considerados peças medievais: a encíclica "Quanta cura" e o realmente
medieval "Syllabus", com a condenação de tudo o que o progresso da época colocara na mente de
seus contemporâneos: naturalismo, racionalismo, socialismo, comunismo e, sobretudo, liberalismo. Afirmou ser impossível a reconciliação do papado com a sociedade moderna -evidente que
a sociedade de seu tempo. Cada
artigo do "Syllabus" terminava
com o terrível bordão: "Anathema sit".
Um autor, Zizola, definiu seu
pontificado como apocalíptico,
"incapaz de discernir no Manifesto de Marx, de 1848, publicado
dois anos após sua eleição, nada
além da anarquia e desagregação
intelectual, mantendo-se cético
em relação à igualdade econômica e social".
Convocou o Concílio Vaticano
1º e, de tudo isso, emergiria o dogma da infalibilidade papal em
matéria de dogma e moral. Para
o jargão de nossa época, poderia
ser classificado como um dinossauro. Aproximá-lo de João Paulo 2º mereceria também um anátema. Mas a aproximação existe.
Nos anos conturbados de seu pontificado, Mastai Ferretti teria de
lançar uma âncora que amarrasse o que se chamava de "nau de
Pedro" no mar da história, que se
agitava com idéias e ideais que
formavam um tsunami devastador. A seu modo, e de forma bem
mais suave, João Paulo 2º fez o
mesmo, lançando a mesma âncora num ponto preciso da história,
esperando que o tsunami passasse, deixando estragos, é certo, mas
não levando a nau para o abismo
da história.
Sua luta não foi dramática como a de Pio 9º. Ele preservou o
dogma e a moral que constituíam
a sua herança espiritual, as cláusulas pétreas de seu compromisso
com a instituição 2.000 vezes secular que aceitou dirigir. Mas se
abriu no campo social com um estilo assombroso, a que não faltaram os exageros da comunicação
de massa.
Seu sucessor encontrará a igreja
imobilizada no campo dogmático
e moral, amarrada pela âncora
de ferro que João Paulo 2º lançou
ao mar de seu tempo. Sua missão
principal, como a de seu antecessor do século 19, foi a de evitar o
naufrágio. E isso ele conseguiu, de
forma até brilhante. O novo papa
assumirá o comando da nau de
Pedro um pouco avariada. Providenciados os reparos, ele tentará
conduzir o barco pelo mar da história.
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