São Paulo, sábado, 22 de julho de 2000


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Autores consideram a literatura uma causa perdida e dizem que rap fez diminuir criminalidade
"A revolução tem de ser feita, pela arte ou pelo terror", diz Ferréz

RAIO-X
Nome e idade:
Ferréz, 24 anos
Livro:
Capão Pecado Formação:
Ensino médio Profissão anterior:
Padeiro e auxiliar de escritório Onde mora:
Capão Redondo (São Paulo)

RAIO-X
Nome e idade:
Paulo Lins, 42 anos Livro:
Cidade de Deus Formação:
Literatura (UFRJ) Profissão anterior:
Professor e pesquisador Onde mora:
Santa Teresa (Rio de Janeiro)

ESPECIAL PARA A FOLHA

Folha - Você teve a intenção de registrar, em seu livro, o dialeto do "gueto"?
Ferréz -
Não conseguia fazer um barato mais difícil. Já tentei poesia concreta, mas nunca vou fazer um livro com pensamento francês. Não faço literatura para elite.

Folha - A violência é o foco?
Lins -
Na favela, sempre a polícia bateu. Mas quando a violência saiu das favelas, quando começou o sequestro, causou comoção. Só agora querem resolver o problema. Nos anos 70, tinha muita guerra de quadrilha, e não saía no jornal. A elite só vai pensar num projeto social na periferia quando começarem a invadir os Jardins e Ipanema.

Ferréz - Se juntar dez maloqueiros do pedaço, a gente faz um regaço, mano. O problema é que o povo não tem opinião formada.

Lins - A relação polícia e excluídos não deu certo. É polícia matando pobre, e pobre matando polícia. Acho, ainda, que a criminalidade é muito pouca no país. Tem muito pouco bandido, comparado com a desigualdade social.

Ferréz - O brasileiro é muito pacato. O cara passa fome 20 anos e não tem coragem de roubar um banco. Luto por uma causa, a literatura, já perdida, mano. Quantos moleques nós vamos influenciar?

Lins - Nossos livros são publicados e não vai acontecer nada. Talvez um ou dois leiam. Mas são milhões de pessoas que não lêem jornal. Só vêem TV aberta, que é comercial. Quem botou a cocaína na favela foi a mídia. Ninguém conhecia a cocaína.

Ferréz - Aqui também, a mídia divulgou de graça. Ninguém conhecia o crack.

Folha - O tráfico é uma força influente na favela?
Ferréz -
Ainda bem. Eles não perturbam, ajudam bastante gente. Os caras são gente fina. O povo aqui acorda às 5h, fica duas horas na condução, trabalha pros "boys", faz a comida deles, veste eles, faz a segurança deles, volta pra cá e não tem comida, roupa nem segurança.

Lins - A vida na favela melhorou muito depois do Comando Vermelho. Antes, havia muito estupro e roubo em ônibus. As favelas foram reurbanizadas graças ao Comando Vermelho.

Ferréz - Fiz o livro, mas é só o começo. O sistema virou a cara, mas quero bater do outro lado. A revolução tem de ser feita, pela arte ou pelo terror. É mais fácil o terror, apesar de eu acreditar na arte. O que vier primeiro eu abraço.

Folha - Vocês acreditam que vem uma revolução por aí?
Ferréz -
Os caras estão ficando loucos, já estão dizendo: "Estão tomando demais da gente...".

Lins - A idéia folclórica do malandro esperto acabou. Agora neguinho está com ódio. Assaltaram uma mulher, na Tijuca, levaram tudo e mataram. Por ódio. Na favela, um moleque de 14 anos me disse que ia matar até os 20, que, pelas estatísticas, é a idade média em que morre um garoto desses.

Folha - O movimento rap não tenta brecar esse tipo de violência?
Ferréz -
Com certeza. Tentamos provar que estudar é o melhor caminho. Tinha de roubar livraria, buscar informação. A informação está coligada com o dinheiro.

Lins - Nas favelas do Rio, o clima é pré-revolucionário. Para eles, a solução é roubar e matar. Matam para assustar.

Ferréz - Tem de derrubar o muro invisível. E os caras estão se organizando, estão falando em se unir e ir pro centro. Não é o povo, são os bandidos.

Lins - Não vou aconselhar ninguém a ir para a guerra, mas não aconselho ninguém a passar fome nem a matar o vizinho. A universidade tinha de intervir, mas fica aquele mundinho, um mostrando projeto para o outro e não sai pra lugar nenhum, numa linguagem de jargão, européia. Eles querem ser europeus. E quem paga as universidades somos nós.

Ferréz - Não usufruímos nada.

Lins - Uma simples orientação resolveria. Não adianta. Nós vamos pra guerra. No Rio, facções trocam tiros entre si.

Ferréz - Aqui, estão surgindo facções que se organizam. E a polícia faz parte.

Lins - O pior é que um só sujeito, no Rio, parou a cidade, com um 38. Imagina se são dois, três, com metralhadoras. Imagina se é a Rocinha toda. Eles estão tendo consciência. O governo tem de intervir. A elite tem de tomar consciência de que é responsável por não passar a informação.

Ferréz - É responsável por eu pagar R$ 40 num livro do Fernando Pessoa.

Folha - Você aprendeu literatura na escola?
Ferréz -
Eu já escrevia contos sem saber o que era conto. Sempre li histórias em quadrinhos, como o "Justiceiro".

Folha - É raro o pessoal da favela se formar?
Ferréz -
A escola não condiz, tá ligado? Se o cara trabalha numa metalúrgica, ele quer saber de ferramentas, mas a escola ensina a difusão do átomo.

Folha - Vocês curtem samba?
Ferréz -
O samba é conivente com toda a desgraça que está aí. Pagode não contribui em nada. Quando um pagodeiro faz sucesso, compra, primeiro, um carro importado, esnoba todo mundo e muda da área. Hoje em dia, não existe mais samba no Brasil.

Lins - A raiz do samba, que foi muito perseguido, é para comemorar a alegria, a festa. Não é um movimento político. O samba do Cartola é de resistência. Até que os jornalistas levaram o samba para a rádio. O pessoal do asfalto passou a comprar o samba. Quando existia só a maconha, existia ainda o samba. Quando começou a guerra nos morros, nos anos 70, por causa da cocaína, os grandes sambas acabaram.

Folha - O rap é forte nos morros cariocas?
Lins -
O rap tirou muita gente da criminalidade, álcool e cocaína. É a voz que vem de dentro.

Folha - Vocês escrevem para quem?
Lins -
Fiz o meu livro para que o pessoal da favela lesse. Uma vez, um amigo meu, chefe de quadrilha, leu o meu livro em voz alta, para um monte de gente armada. Mas o meu livro é muito grosso, dá preguiça (risos).

Ferréz - É grosso e caro.

Lins - Vendeu 10 mil cópias, muito pouco. A solução é a comunidade invadir a escola. Trabalhamos muito em mutirão. Quer um exemplo? Garanto que muita gente veio e ajudou a levantar aquela laje (aponta para um casebre).

Ferréz - Veio.

Lins - Como a gente se reúne para levantar uma laje, fazer um campo de futebol, deveríamos nos reunir para tomar a escola, construir bibliotecas.

Ferréz - O aluno, aqui, não tem amor pela escola. Estuda de segunda a sexta para pegar o leite. A comunidade só participa para dar dinheiro para a APM (Associação de Pais e Mestres). Uma vez, fui dar um show na minha antiga escola (Euclides da Cunha), falamos que a escola tinha de ser aberta e fomos proibidos de voltar lá.

Lins - A escola não pode apenas preparar mão-de-obra barata.

Folha - Ferréz, o que você achou do livro "Cidade de Deus"?
Ferréz -
Acho bom, mil vezes melhor que o meu. É uma história amarrada, que explica como surgiu a guerra do tráfico, mas é grosso, e a linguagem não é para a periferia. Mas, de repente, ele quis isso mesmo, mostrar essa linguagem literária para a periferia. Eu quero que o maloqueiro leia o meu livro e não esbarre em nenhuma palavra mais complicada.

Lins - As pessoas têm de ler todo tipo de literatura. Qualquer tipo de livro é válido.


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