São Paulo, quarta-feira, 22 de julho de 2009

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"Odeio a cultura do desprezo no Brasil"

Cantor desaprova tendência a desvalorizar tudo o que "ganha corpo" no país e diz que EUA precisam entender Lulu Santos

Músico comenta relação com a espiritualidade e diz que, recentemente, passou a ser "programaticamente antirreligioso"

DA REPORTAGEM LOCAL

Nessa parte da entrevista, Caetano Veloso fala sobre a velhice, a morte, a religião e "um idiota" que desqualificou seu canto. (SILVANA ARANTES)

 


FOLHA - Se a velhice traz a conclusão de que "o pior já passou", como diz no filme, o que foi o seu pior?
CAETANO - Não é bem uma conclusão. É a constatação de que não se pode pôr tudo na conta da velhice. Alguns podem viver o pior de suas vidas aos 17, ou aos 35, ou aos 42, e atravessar a velhice com alegria e paz.
No filme, não falava de mim. Sou um cara que tem saudades da juventude -não do tempo em que fui jovem, mas da juventude em si, do equilíbrio e da elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina forte, as ereções firmes, a alegria física da juventude.
Mas não sou burro e sei que não é impossível alguém ter, no cômputo geral, mais alegria na velhice. Reconheço que há vários aspectos da minha vida que melhoraram -e ainda desejo melhorar mais. Algumas coisas, no entanto, não podem deixar de decair com a idade.

FOLHA - Você fala no filme de seu enterro. Teme a morte ou morrer?
CAETANO - Tenho medo das duas coisas. Mas tinha mais quando era mais moço e mais narcisista.

FOLHA - Numa cena, você se preocupa com sua voz. Como lidou com a perda vocal de Gilberto Gil? O filme revela sua recusa à maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara de político babaca". Que impacto teve em sua relação com Gil a decisão dele de ser ministro da Cultura?
CAETANO - Gostaria de ter podido persuadir Gil a poupar mais a garganta. Embora a voz brilhante e extensa que ele tinha fosse linda, a força de Gil está na musicalidade, no modo como toca o violão, como intui a rítmica de uma frase, como revela a consciência imediata das relações entre as notas. Isso não depende de voz limpa.
Quanto ao ministério, é sabido que eu lhe disse: "Lula já é um símbolo: você será o Lula do Lula". No fim, achei que ele foi mesmo um Lula do Lula. Só que isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula, não teve o caráter negativo que eu temia.

FOLHA - Em "Coração Vagabundo" você diz que "a pobreza termina resultando espiritualmente". Trata-se de um pensamento religioso de alguém que se diz antirreligioso?
CAETANO - Não. Essa nossa carne cuja existência percebemos é um fato espiritual o tempo todo. Já fui antirreligioso; depois, fui contra essa posição, que me parecia uma repressão da religiosidade. Passei a ser mais programaticamente antirreligioso, porque odeio hipocrisia e temo o fanatismo.

FOLHA - Em cena no Japão você fala da consciência de ser "racialmente suspeito'; em NY, diz-se distinto de quem nasceu acreditando estar no mundo. Hoje sente-se mais estrangeiro no lugar do que no momento?
CAETANO - Sempre estrangeiro. Sou um brasileiro brasileirista. Gosto de São Paulo porque é diferente do Brasil de Vargas e da Rádio Nacional. Mas odeio a cultura do desprezo a tudo o que ganhou ou ganha corpo no Brasil (inclusive Vargas e Rádio Nacional). Outro dia li um idiota desqualificando meu canto em "Zii e Zie" porque supostamente pareceria com Cauby Peixoto e Ângela Maria. Mas eu penso que os EUA só se salvarão quando entenderem Chico Buarque e Lulu Santos.

Leia Caetano falando sobre Paula Lavigne em

www.folha.com.br/092021


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