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"Odeio a cultura do desprezo no Brasil"
Cantor desaprova tendência a desvalorizar tudo o que "ganha corpo" no país e diz que EUA precisam entender Lulu Santos
Músico comenta relação com a espiritualidade e diz que, recentemente, passou a ser "programaticamente antirreligioso"
DA REPORTAGEM LOCAL
Nessa parte da entrevista,
Caetano Veloso fala sobre a velhice, a morte, a religião e "um
idiota" que desqualificou seu
canto.
(SILVANA ARANTES)
FOLHA - Se a velhice traz a conclusão de que "o pior já passou", como
diz no filme, o que foi o seu pior?
CAETANO - Não é bem uma conclusão. É a constatação de que
não se pode pôr tudo na conta
da velhice. Alguns podem viver
o pior de suas vidas aos 17, ou
aos 35, ou aos 42, e atravessar a
velhice com alegria e paz.
No
filme, não falava de mim.
Sou um cara que tem saudades da juventude -não do tempo em que fui jovem, mas da juventude em si, do equilíbrio e
da elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina
forte, as ereções firmes, a alegria física da juventude.
Mas não sou burro e sei que
não é impossível alguém ter, no
cômputo geral, mais alegria na
velhice. Reconheço que há vários aspectos da minha vida que
melhoraram -e ainda desejo
melhorar mais. Algumas coisas,
no entanto, não podem deixar
de decair com a idade.
FOLHA - Você fala no filme de seu
enterro. Teme a morte ou morrer?
CAETANO - Tenho medo das
duas coisas. Mas tinha mais
quando era mais moço e mais
narcisista.
FOLHA - Numa cena, você se preocupa com sua voz. Como lidou com a
perda vocal de Gilberto Gil? O filme
revela sua recusa à maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara
de político babaca". Que impacto teve em sua relação com Gil a decisão
dele de ser ministro da Cultura?
CAETANO - Gostaria de ter podido persuadir Gil a poupar mais
a garganta. Embora a voz brilhante e extensa que ele tinha
fosse linda, a força de Gil está
na musicalidade, no modo como toca o violão, como intui a
rítmica de uma frase, como revela a consciência imediata das
relações entre as notas. Isso
não depende de voz limpa.
Quanto ao ministério, é sabido que eu lhe disse: "Lula já é
um símbolo: você será o Lula do
Lula". No fim, achei que ele foi
mesmo um Lula do Lula. Só que
isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula, não teve o caráter negativo que eu temia.
FOLHA - Em "Coração Vagabundo"
você diz que "a pobreza termina resultando espiritualmente". Trata-se
de um pensamento religioso de alguém que se diz antirreligioso?
CAETANO - Não. Essa nossa carne cuja existência percebemos
é um fato espiritual o tempo todo. Já fui antirreligioso; depois,
fui contra essa posição, que me
parecia uma repressão da religiosidade. Passei a ser mais
programaticamente antirreligioso, porque odeio hipocrisia e
temo o fanatismo.
FOLHA - Em cena no Japão você fala da consciência de ser "racialmente
suspeito'; em NY, diz-se distinto de
quem nasceu acreditando estar no
mundo. Hoje sente-se mais estrangeiro no lugar do que no momento?
CAETANO - Sempre estrangeiro.
Sou um brasileiro brasileirista.
Gosto de São Paulo porque é diferente do Brasil de Vargas e da
Rádio Nacional. Mas odeio a
cultura do desprezo a tudo o
que ganhou ou ganha corpo no
Brasil (inclusive Vargas e Rádio
Nacional). Outro dia li um idiota desqualificando meu canto
em "Zii e Zie" porque supostamente pareceria com Cauby
Peixoto e Ângela Maria. Mas eu
penso que os EUA só se salvarão quando entenderem Chico
Buarque e Lulu Santos.
Leia Caetano falando
sobre Paula Lavigne em
www.folha.com.br/092021
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