São Paulo, Quarta-feira, 22 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EU GOSTEI BECK
O sorriso sacana

Divulgação
O cantor e compositor Beck, de Los Angeles, que lança o álbum "Midnite Vultures"


MARCELO NEGROMONTE
da Redação


Ele continua rindo de todo mundo com um meio sorriso, de escárnio, de euforia, de quem-fez-o-hino-da-década e que se exercita indo a fundo em gêneros díspares durante a mesma década -mas ele não era folk, caipira e esquisito?. Beck está três andares acima do pop e acaba de lançar o último ótimo álbum dos anos 90. Ele faz questão de encerrá-la de seu jeito: como não se espera, "agressivo, experimental", como disse à Folha há um ano, com "Midnite Vultures".
Black music, funk, hip hop. Ele sacaneia, ironiza, olhando de cima, como um abutre da meia-noite, com o sorriso do gato de "Alice no País das Maravilhas": "Hey, é assim que penso que se faz, mas não me importo, sou um perdedor, baby, não se esqueça". Mera questão de perspectiva.
A capa é quase redundante, talvez coerente. É virada dos 70/80: neon, negões, Prince, purpurina, disco, cores, folk, rap e muito funk. Ácido lisérgico em polpa imerso num mundo de decadências, destruições, horror, bizarrices -tudo sem conflito. Beck foge, se insere e, via essa inserção, tripudia deste mundo imundo de final de século. Não há refresco.
"Get Real Paid" move, chacoalha, entra pelos poros: "Nós gostamos dos garotos com coletes à prova de bala/ Nós gostamos das garotas com peitos de celofane (...) Toque o meu ânus se for qualificado". Incesto, poder, dinheiro, sacanagem braba, Miami bass: electro-sexual. Vai dos guetos para o absurdo sem escalas.
Símbolos gays há vários -da capa às letras e músicas. E só as há porque existem moralismo, regras cada vez mais rígidas, encarceramento e uniformização do indivíduo. Beck as revira. E as revira novamente sem necessariamente causar choque, mas risos. A graça está em ser sublime e ridículo.
Os teares musicais estão lá todos. Em "Peaches & Cream", na linda e festeira "Sexx Laws" ("quero desafiar a lógica de todas as leis sexuais" -sim, ainda há leis sociais veladas e pétreas para sexo; arrombe-as, pode ser instrutivo), "Hollywood Freaks" (ele próprio um deles por justamente não sê-lo de modo trágico) e "Debra", música em que é evidente uma ironia fina e um respeito a Prince, Jagger -Beck aqui está à larga. Misturar, é fato, não é novo, mas fazê-lo com deboche inteligente sempre é.
"Mutations" e "Odelay" permeiam quase todo o disco; Beck se destrói também. Há ainda desconstrução-colagem (ferramenta básica de Beck) em "Milk & Honey". Colagem de idéias principalmente: "Atletas de Bancoc na biosfera/ Sonhos molhados do Arkansas/ Nós todos desaparecemos", diz sincopado.
"Midnite Vultures" espanta pelo estratagema cínico. Dance muito com ele, pense em nada sem ele em 2000, faça sexo com ele à vontade -só porque você pode. Se Beck não se leva a sério, quem há de fazê-lo? Adeus, anos 90.


Avaliação:     


Texto Anterior: Iberê se destaca em casa
Próximo Texto: Eu não gostei
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.