São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

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Crítica/"Vênus"

O'Toole brilha em filme britânico desigual

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Bioy Casares, o escritor argentino, notou, chegando a certa idade, que se tornara invisível para as mulheres. Elas passavam e era como se não existisse, ele disse. Adolfo Bioy Casares era conhecido em seu meio como homem bonito e sedutor. Bem menos, em todo caso, do que Peter O'Toole, que está para a Inglaterra como Mastroianni está para a Itália, como Alain Delon para a França.
Em "Vênus", no entanto, O'Toole chegou a essa idade a que se refere Bioy. Ele se chama Maurice e arrasta sua velhice com o amigo Ian (Leslie Phillips). Juntos, eles recordam momentos passados no palco -são atores-, vão ao teatro, contam tostões da aposentadoria. A rigor, esperam pela morte. Isso até que Jessie (Jodie Whittaker), sobrinha-neta de Ian, entra em cena para horror de Ian e alegria de Maurice.
Maurice parece não se incomodar com os modos grosseiros de Jessie. Não é isso o que ele vê. Maurice vê nela uma beleza que talvez nem ela mesma consiga ver. Jessie afasta o velho para longe de si sem grande sutileza. Ele não se importa.
Velho sedutor, busca seduzi-la, agradá-la. Tornar-se visível à jovem, em suma.
O que ele deseja? Questão complicada. Maurice não é tolo e conhece o abismo etário que o separa da jovem. Isso não o impede de levá-la à National Gallery de Londres para ver a "Vênus" de Velásquez. Essa é a idéia que ele faz de Jessie. Até que ponto poderá ela permanecer indiferente a isso?
Fiquemos por aqui, por um tempo. A primeira parte do filme é uma delícia. Seja pelo modo de vida dos velhos atores, pela discrepância em suas maneiras de ver o mundo (Ian, ao receber a sobrinha-neta, pede por eutanásia; Maurice se apaixona), pelo contraste entre os modos do velho e da jovem, pelos diálogos de humor cortante, à inglesa.
A segunda parte tem como centro uma operação da próstata que torna Maurice impotente. E não só ele: o filme junto, na medida em que toda a ambigüidade, que até então se cria em torno das relações entretidas pelo velho com a moça, perde-se desde então.
Talvez interessasse ao roteirista Hanif Kureishi (que escreveu os primeiros sucessos de Stephen Frears) notar que o desejo sobrevive à ereção -o que não é insignificante. Talvez isso não interessasse na mesma medida ao diretor Roger Michell (que é antes de mais nada um bom "faire valoir" de atores de primeira linha), ou, quem sabe, Michell não estivesse à altura desse desafio.
O fato é que, na segunda parte, "Vênus" acumula meio ao acaso momentos significativos e outros (como a entrada em cena do namorado de Jessie) que parecem estar lá só para dar metragem ao filme.
O mistério do desejo e sua ambigüidade, representados por Maurice, cedem lugar a um velho quase gagá em sua relação absurda com a garota.
Apesar disso, mesmo nos momentos em que "Vênus" parece a ponto de perder sua força, em que a comédia dramática parece pronta a ceder lugar a um drama massudo e pouco apaixonante, Peter O'Toole continua a criar um personagem impecável. É ele, a rigor, seu presente e seu passado, sua beleza impecável, quase feminina, o começo e o fim, o fundamento de "Vênus". Ele é um espetáculo.


VÊNUS    
Direção: Roger Michell
Produção: Reino Unido, 2006
Com: Peter O'Toole, Jodie Whittaker, Vanessa Redgrave
Quando: a partir de hoje nos cines Bombril, Unibanco Arteplex e circuito


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