São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

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Aeroporto ensina a viver os perigos do Rio

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Nasci em fevereiro, no meio de uma grande enchente. Todos os anos, fico meio inquieto perto do aniversário. Um adepto da astrologia talvez dissesse que é o meu período de inferno astral. Alguém chegado à cultura africana talvez descrevesse isso como uma guerra de orixás. Prefiro considerar apenas uma coincidência suspeita.
O fato é que desci no aeroporto Santos Dumont no princípio do mês e resolvi ir ao banheiro porque temia perder muito tempo engarrafado no trânsito. Encostei o carrinho com as malas atrás de mim e ouvi algumas conversas sobre o jogo de futebol. Era algo assim como uma crítica ao goleiro do Fluminense, que tinha se adiantado e levado um gol. Pensei: este banheiro está animado. E quando virei as costas, levei um choque: levaram o computador.
Foi a primeira perda e ficamos todos muito tristes, pois os carregadores de mala, seguranças e funcionários aéreos tentaram em vão localizá-lo. Dançou definitivamente. Os seguranças me contaram que havia uma quadrilha por ali que trabalhava com malas cheias de pedra. Encostavam, levavam a mala do passageiro e deixavam a mala de pedras em seu lugar. No caso do computador, deixaram um vazio mais pesado que as pedras.
Dias depois, o aeroporto queimou. Terei de me acostumar a partir de uma ruína e voltar para uma ruína, uma vez que o Rio, decadente ou perigoso, é o meu lugar, embora não possa garantir que serei radical assim por toda a vida.
O incêndio do aeroporto levou também o registro do roubo do computador. Lá se foram a memória de alguns trabalhos e também a memória da perda, nas cinzas do Santos Dumont.
Chegamos ao dia mesmo do aniversário. Audiência pública na Light. O clima estava um pouco hostil e não deixaram que estacionássemos na garagem do prédio do Senai. Usamos uma rua chamada Morais e Silva, que ficava bem atrás. Não sabíamos que é celebre por inundar com os primeiros minutos de temporal.
Dentro da audiência pública acabou a luz. Gritos, protestos. A amiga dona do carro veio me dizer no escuro: "Procurei nosso carro e vi que estava sendo levado pela correnteza. Olhei bem, alguns minutos depois, e não o vi mais. Impossível tentar alguma coisa com a água na barriga. Passou um cara com um bote inflável, mas não dava carona."
Estava aí uma boa hora para cantar parabéns: tudo escuro na audiência pela qual trabalhei e que ia fracassando como resultado. E o carro tinha sumido na correnteza.
Quando tudo acabou, com a água imunda até o joelho, chegamos ao carro, interceptado por um providencial poste diante da escola Paradigma. Perda total. O motor estava cheio de folhas, a água tinha entrado até a altura do painel, o sistema elétrico enlouquecera para sempre, sofrera uma espécie de lobotomia eletrônica. O carro nunca mais prestaria.
Foi aí que sentamos no banco molhado e começamos a nos perguntar: Tem seguro? O pagamento está em dia? Respondidas essas perguntas, respiramos um pouco: afinal, estávamos semipreparados para viver próximos da calamidade.
Fizemos mil promessas. A partir de agora, buscar apenas ruas altas, prever os temporais, catalogar seguros e garantias. Quando tentávamos um reboque, o telefone celular caiu no banco de trás e do banco foi ao chão do carro inundado. Morte instantânea.
Os avisos tinham chegado aos poucos. Na segunda, leio meu artigo na Folha com o título "Penso, logo Cristo". Quase caí para trás. Escrevi o texto no laptop de um amigo e ditei o título por telefone para uma assistente: ela entendeu Cristo ao invés de "existo", mandou Descartes para o inferno num só golpe de caneta.
Creio que agora, na calma desse princípio de Carnaval, posso olhar para trás e sorrir. A nota fiscal da garantia do telefone que se afogou tem endereço, CGC e tal, mas não tem telefone. Percebo que a nota é de uma empresa fria, portanto a garantia de um ano é gelada.
Pensando bem, sou eu que tenho de mudar radicalmente. Qualquer transigência vai esbarrar nas cinzas do aeroporto Santos Dumont. Durante alguns meses, vou me lembrar sempre, ao chegar e sair dos escombros, que os tempos mudaram e viver por aqui demanda as qualidades da velha canção: é preciso estar atento e forte.
Seria isso tudo um aviso dos deuses? Nesse caso, por que um caminho tão sinuoso? Bastava uma mensagem naquele pequeno placar eletrônico: te liga malandro, estação Rio de Janeiro.
Meu vocabulário, pelo menos, se enriqueceu: perda total, lucros cessantes, rito sumário de indenização, frequência de duração de cortes, tempo de duração dos cortes e, naturalmente, cuidado com a valise e com as coisas que você diz ao telefone: penso logo Cristo foi a herança escrita da loucura da semana.



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