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Aeroporto ensina a viver os perigos do Rio
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Nasci em fevereiro, no meio
de uma grande enchente. Todos os anos, fico meio inquieto
perto do aniversário. Um
adepto da astrologia talvez
dissesse que é o meu período de
inferno astral. Alguém chegado à cultura africana talvez
descrevesse isso como uma
guerra de orixás. Prefiro considerar apenas uma coincidência suspeita.
O fato é que desci no aeroporto Santos Dumont no princípio do mês e resolvi ir ao banheiro porque temia perder
muito tempo engarrafado no
trânsito. Encostei o carrinho
com as malas atrás de mim e
ouvi algumas conversas sobre
o jogo de futebol. Era algo assim como uma crítica ao goleiro do Fluminense, que tinha se
adiantado e levado um gol.
Pensei: este banheiro está animado. E quando virei as costas, levei um choque: levaram
o computador.
Foi a primeira perda e ficamos todos muito tristes, pois os
carregadores de mala, seguranças e funcionários aéreos
tentaram em vão localizá-lo.
Dançou definitivamente. Os
seguranças me contaram que
havia uma quadrilha por ali
que trabalhava com malas
cheias de pedra. Encostavam,
levavam a mala do passageiro
e deixavam a mala de pedras
em seu lugar. No caso do computador, deixaram um vazio
mais pesado que as pedras.
Dias depois, o aeroporto
queimou. Terei de me acostumar a partir de uma ruína e
voltar para uma ruína, uma
vez que o Rio, decadente ou
perigoso, é o meu lugar, embora não possa garantir que serei
radical assim por toda a vida.
O incêndio do aeroporto levou também o registro do roubo do computador. Lá se foram
a memória de alguns trabalhos
e também a memória da perda, nas cinzas do Santos Dumont.
Chegamos ao dia mesmo do
aniversário. Audiência pública
na Light. O clima estava um
pouco hostil e não deixaram
que estacionássemos na garagem do prédio do Senai. Usamos uma rua chamada Morais
e Silva, que ficava bem atrás.
Não sabíamos que é celebre
por inundar com os primeiros
minutos de temporal.
Dentro da audiência pública
acabou a luz. Gritos, protestos.
A amiga dona do carro veio
me dizer no escuro: "Procurei
nosso carro e vi que estava sendo levado pela correnteza.
Olhei bem, alguns minutos depois, e não o vi mais. Impossível tentar alguma coisa com a
água na barriga. Passou um
cara com um bote inflável, mas
não dava carona."
Estava aí uma boa hora para
cantar parabéns: tudo escuro
na audiência pela qual trabalhei e que ia fracassando como
resultado. E o carro tinha sumido na correnteza.
Quando tudo acabou, com a
água imunda até o joelho, chegamos ao carro, interceptado
por um providencial poste
diante da escola Paradigma.
Perda total. O motor estava
cheio de folhas, a água tinha
entrado até a altura do painel,
o sistema elétrico enlouquecera para sempre, sofrera uma
espécie de lobotomia eletrônica. O carro nunca mais prestaria.
Foi aí que sentamos no banco molhado e começamos a nos
perguntar: Tem seguro? O pagamento está em dia? Respondidas essas perguntas, respiramos um pouco: afinal, estávamos semipreparados para viver próximos da calamidade.
Fizemos mil promessas. A
partir de agora, buscar apenas
ruas altas, prever os temporais,
catalogar seguros e garantias.
Quando tentávamos um reboque, o telefone celular caiu no
banco de trás e do banco foi ao
chão do carro inundado. Morte instantânea.
Os avisos tinham chegado
aos poucos. Na segunda, leio
meu artigo na Folha com o título "Penso, logo Cristo". Quase caí para trás. Escrevi o texto
no laptop de um amigo e ditei
o título por telefone para uma
assistente: ela entendeu Cristo
ao invés de "existo", mandou
Descartes para o inferno num
só golpe de caneta.
Creio que agora, na calma
desse princípio de Carnaval,
posso olhar para trás e sorrir.
A nota fiscal da garantia do telefone que se afogou tem endereço, CGC e tal, mas não tem
telefone. Percebo que a nota é
de uma empresa fria, portanto
a garantia de um ano é gelada.
Pensando bem, sou eu que tenho de mudar radicalmente.
Qualquer transigência vai esbarrar nas cinzas do aeroporto
Santos Dumont. Durante alguns meses, vou me lembrar
sempre, ao chegar e sair dos escombros, que os tempos mudaram e viver por aqui demanda
as qualidades da velha canção:
é preciso estar atento e forte.
Seria isso tudo um aviso dos
deuses? Nesse caso, por que um
caminho tão sinuoso? Bastava
uma mensagem naquele pequeno placar eletrônico: te liga
malandro, estação Rio de Janeiro.
Meu vocabulário, pelo menos, se enriqueceu: perda total,
lucros cessantes, rito sumário
de indenização, frequência de
duração de cortes, tempo de
duração dos cortes e, naturalmente, cuidado com a valise e
com as coisas que você diz ao
telefone: penso logo Cristo foi a
herança escrita da loucura da
semana.
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