São Paulo, Sexta-feira, 23 de Abril de 1999
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ARTIGO
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GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

De há muito radicado no Rio de Janeiro, onde fez seu primeiro filme em 1962 sobre escola de samba, Cacá Diegues veio ao mundo em Alagoas. Ele nasceu em berço cultural privilegiado, filho do antropólogo e estudioso do folclore, Manuel Dieguês Junior, amigo de Gilberto Freyre e Luis da Camara Cascudo, os dois maiores intelectuais do Nordeste.
A fortuna crítica de Cacá prossegue no cinema porque privou, desde quando era bem jovem, com Glauber Rocha, de quem talvez tenha sido o amigo mais próximo. Essa bela fraternidade, incluindo amigos e mulheres, foi contada no livro "A Revolução do Cinema Novo" (1980), dedicando muitas páginas exegéticas à filmografia do "irmão" Carlos Fontes Dieguês.
A favela, o Zumbi, "A Grande Cidade", sem esquecer "Xica da Silva", o filme de Cacá preferido por Glauber, que aliás gostava dos romances de Jorge Amado, com quem fez um curta-metragem convencional utilizando na banda sonora um elepê do cantor João Gilberto. Seu pior filme.
Existe um ruído esquisito entre a macumba de "Barravento" e a literatura jorjamadiana, a qual apresenta o negro da Bahia como o dono do mundo, que é a protoideologia da tropicália baiana dos sixties: a mistificação etnológica do papel predominante do negro na cultura popular brasileira, ou seja, a visão sensual e hedonística da negritude. O escravo negro sofre, mas também se diverte.
É inegável que, do ponto de vista da exploração do trabalho, todos nós somos devedores de direitos autorais aos favelados. Do samba de Nelson Pereira dos Santos ao Maiocojequisô em Canudos, ou senão Zumbi visto por Orson Welles. Curiosamente Glauber elogia "Ganga Zumba", de Cacá Dieguês, em detrimento do filme "Orfeu Negro", do francês Marcel Camus.
Esse filme de 1959 foi também criticado por Jean Luc-Godard na revista "Cahiers du Cinéma", "O Brasil Visto de Billancourt". Godard achou que Marcel Camus não entendeu nada do Rio de Janeiro. Ao cartão-postal de "Orfeu Negro" contrapõe o documentário "Moi, un Noir", de Jean Rouch, observando em seu artigo que, ao invés de maquinista de trem, "Orfeu Negro" deveria ser chofer de lotação, assistindo a sua querida esposa Eurídice aterrissar, entre o mar e o arranha-céu, no "pequeno e maravilhoso aeroporto Santos Dumont".
O crítico marxista Jean Luc-Godard, "marxista ocidental" segundo Perry Anderson, reclama que as mãos de "Orfeu Negro" não estão livres para pegar na moeda do absoluto, sendo que o cinema para Godard é a história fotográfica da mão, ou segundo a fórmula do sociólogo Edgar Morin: "a girl and a gun".


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros.

Filme: Orfeu Produção: Brasil, 1999 Direção: Cacá Diegues Com: Toni Garrido, Patrícia França Quando: a partir de hoje, nos cines Paulista 1, West Plaza 4, Iguatemi 2 e circuito


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