São Paulo, Sexta-feira, 23 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA - "O AMIGO DO DEFUNTO"
Produção radiografa o Leste Europeu hoje

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

A produção franco-ucraniana "O Amigo do Defunto" é, a um primeiro olhar, uma amarga comédia de erros protagonizada por um jovem intelectual desajustado.
Com um pouco mais de atenção, percebemos que esse pequeno grande filme é um exemplo elevado de um certo realismo crítico, em que a trajetória de um indivíduo revela todo um amplo processo histórico-social.
O indivíduo, no caso, é Anatoli (Alexandre Lazarev), intelectual de 35 anos que sobrevive a duras penas em Kiev, Ucrânia, fazendo "bicos" como tradutor.
O contexto que suas desventuras revelam é o da transição do socialismo totalitário soviético para o capitalismo selvagem, processo que tem gerado caos, violência e desencanto no Leste Europeu.
Pela leitura do filme, o dinheiro comanda hoje as relações humanas na Ucrânia, atropelando todos os outros valores.
Anatoli é o exemplo vivo de uma espécie que ficou para trás, a do intelectual humanista. Vive como um marginal e é sustentado pela mulher, que trabalha em publicidade e o trai com um yuppie.
Quando a situação lhe parece insuportável, Anatoli contrata por telefone um assassino profissional. Alega que quer se livrar do amante da mulher, mas manda ao matador sua própria foto e os endereços que costuma frequentar.
Com os dias contados, Anatoli envolve-se com uma jovem prostituta, Lena (Tatiana Krivitskaia), desajustada como ele.
Para deter o mecanismo suicida que colocou em marcha, só lhe resta contratar um guarda-costas.
Com economia de meios, sem ênfase e sem discursos, o diretor Krichtofovitch extrai o quanto pode dessa situação.
Apesar da naturalidade com que os eventos e personagens vão aparecendo, nada no filme é aleatório. Das roupas aos objetos, dos ambientes à conversa miúda, tudo contribui para o retrato de uma sociedade em rápida transformação.
Um dos personagens-chave da trama é Dima (Evgueni Pachin), velho amigo de Anatoli que tem um bar e vive agenciando pequenas e grandes contravenções (de divórcios fraudados a assassinatos por encomenda). Entre um porre e outro de vodca, Dima mostra que tudo tem seu preço, desde que pago em dólar.
Do ponto de vista formal, chama a atenção o uso criativo e eficiente da profundidade de campo. Em vez de recorrer, como no cinema convencional, ao campo/contracampo e aos diálogos como motores únicos da narrativa, Krichtofovitch prefere fazer a ação avançar e tornar-se mais complexa no interior de cada plano.
Um exemplo: quando Anatoli contrata um guarda-costas, este pede-lhe uns minutos para se arrumar. Vemos então, no mesmo enquadramento: o homem, de costas, fazendo a barba; num canto do espelho, uma foto sua, fardado de militar; por uma janela, Anatoli, que espera no quintal, impaciente.
Pode-se imaginar quantos cortes e diálogos explicativos uma cena como essa implicaria num filme rotineiro. Mas este, definitivamente, não é um filme rotineiro.


Avaliação:


Filme: O Amigo do Defunto Produção: Ucrânia/França, 1997 Direção: Viatcheslav Krichtofovitch Com: Alexandre Lazarev, Tatiana Krivitskaia Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 2


Texto Anterior: Repibléquimovies
Próximo Texto: "Uma Loucura de Casamento": Casar com Cameron pode ser problema
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.