|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Água viva
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Só conheci riachos na minha
vida, sempre alegres, saltitantes, apesar de saber da fama pardacenta, profunda e melancólica
dos grandes rios. Mas a água, ainda assim, nunca me parece triste.
Cachoeiras, então, nem se diga,
não há como explicar a queda d'água e o abrigo debaixo daquela
sombra translúcida, sob a cortina
do jorro de gotas frias, como um
besouro numa caixa de vidro.
Sente-se que um deus está ali por
perto, sente-se com certeza absoluta a mão líquida dele, não tem
como cachoeira para te dar esta
impressão, a paz de pertencer.
Deus é fresco, a palavra frescor calha muito com Deus.
Mas, M de A, isto é, mudando
de assunto, não quero falar de
água de mar nem de rio, queria falar era do poço, uma água que não
era triste nem alegre, ficava lá, parada, morava lá com certeza há
muito tempo, no escuro, esperando o balde, a cabaça, a bilha, sem
se sujar com o lodo e os sapos, semente verde, promessa de água
de beber, camará. Hora da sede é
aquela em que a água toma gosto
e banha uma pessoa por dentro,
por inteiro.
Criança pequena não tem medo
do poço, tem mais é uma tentação
de querer ir, um poço é um mistério que vem de um lugar desconhecido, o umbigo doce da terra.
Matava a sede só de sentar ali do
lado, naquela terra ressequida, rachada, com uns pequenos tufos
de capim ralo crestado, e a água
subia perna acima, uma chuva
que também vinha de baixo, e que
a terra seca de volta do poço bebia
imediatamente, e continuava seca, mas a gente se sentia úmida,
forte. E para lá era o sol quente, a
única nuvem pequena, o mormaço. Uma coisa engraçada.
Era água que tinha um pouco de
ouro dentro, como os varks que
cobrem a comida indiana, a comida da avó banhava-se naquela
água que apagava o fogo, cadê a
água, fogo apagou, cadê a água,
boi bebeu, cadê o boi, foi carrear
trigo, cadê o trigo...
E a panela no fogo, a lenha queimando, a água borbulhando e
quente, a mesma água que gelava
no fundo do poço. E amolecia as
coisa mais duras, fazia do feijão
um creme, punha juízo no arroz
magrinho que espetava, bebia o
açúcar, o sal, mudava de sabores
conforme o que se derretia nela,
trocava de cores numa sem-vergonhice fácil, vermelha, marrom,
verde, amarela, e cheiros, cheiros
de especiarias, perfumes de dose
dupla depois de molhados. E a
água morna tinha gosto de nata
de leite.
E quando fervia pegava-se a
concha e ia-se escaldando a farinha aos poucos, a farinha virava
cama para o peixe cozido.
Nunca cheguei a ver a lua no poço, a tampa podre cobria tudo.
Talvez a minguante se esgueirasse
com facilidade, luna que se quiebra contra las tinieblas de la soledad das pedras redondas, mas diziam que água de lua na comida
podia matar e com certeza matava
mesmo, Deus o livre.
Minha mãe fazia frango ensopado de ouvido, punha a água uma
vez, aos pouquinhos, e quando
começava a chiar juntava mais
uma caneca, e esperava chiar de
novo.
Precisava grudar, sem queimar,
no fundo da panela, três vezes.
Depois cobria de água generosa
que pouco a pouco se engrossava
com as migalhas marrons.
E o mais interessante é que as
receitas se esquecem sempre da
água, mencionam tudo, do cabrito ao sal, as gotas de pimenta, a xícara de fubá, o tanto de couve picada, o tamanho das batatas, que
podem ser pequenas, médias e
grandes, mas se esquecem, imaginem de quê, sempre, se esquecem
da água, receita nenhuma leva
água, ai de nós se acreditarmos,
como se...
E imaginem vocês se um dia eu
tivesse morado na roça, e não vizinha do Empório Santa Luzia, a vida inteira. Com certeza iria ser
dessas freiras trancadas, freiras de
pedir água para Deus nas secas
maiores.
Ah, e o jeito mais próprio de tirar água de um poço é de joelhos.
ninahort@uol.com.br
Texto Anterior: Cinema: Norma Bengell se defende em carta Próximo Texto: Mundo de Baco: Nova adega realça o boom australiano Índice
|