São Paulo, quinta-feira, 23 de maio de 2002

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GASTRONOMIA

Água viva

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Só conheci riachos na minha vida, sempre alegres, saltitantes, apesar de saber da fama pardacenta, profunda e melancólica dos grandes rios. Mas a água, ainda assim, nunca me parece triste.
Cachoeiras, então, nem se diga, não há como explicar a queda d'água e o abrigo debaixo daquela sombra translúcida, sob a cortina do jorro de gotas frias, como um besouro numa caixa de vidro. Sente-se que um deus está ali por perto, sente-se com certeza absoluta a mão líquida dele, não tem como cachoeira para te dar esta impressão, a paz de pertencer. Deus é fresco, a palavra frescor calha muito com Deus.
Mas, M de A, isto é, mudando de assunto, não quero falar de água de mar nem de rio, queria falar era do poço, uma água que não era triste nem alegre, ficava lá, parada, morava lá com certeza há muito tempo, no escuro, esperando o balde, a cabaça, a bilha, sem se sujar com o lodo e os sapos, semente verde, promessa de água de beber, camará. Hora da sede é aquela em que a água toma gosto e banha uma pessoa por dentro, por inteiro.
Criança pequena não tem medo do poço, tem mais é uma tentação de querer ir, um poço é um mistério que vem de um lugar desconhecido, o umbigo doce da terra.
Matava a sede só de sentar ali do lado, naquela terra ressequida, rachada, com uns pequenos tufos de capim ralo crestado, e a água subia perna acima, uma chuva que também vinha de baixo, e que a terra seca de volta do poço bebia imediatamente, e continuava seca, mas a gente se sentia úmida, forte. E para lá era o sol quente, a única nuvem pequena, o mormaço. Uma coisa engraçada.
Era água que tinha um pouco de ouro dentro, como os varks que cobrem a comida indiana, a comida da avó banhava-se naquela água que apagava o fogo, cadê a água, fogo apagou, cadê a água, boi bebeu, cadê o boi, foi carrear trigo, cadê o trigo...
E a panela no fogo, a lenha queimando, a água borbulhando e quente, a mesma água que gelava no fundo do poço. E amolecia as coisa mais duras, fazia do feijão um creme, punha juízo no arroz magrinho que espetava, bebia o açúcar, o sal, mudava de sabores conforme o que se derretia nela, trocava de cores numa sem-vergonhice fácil, vermelha, marrom, verde, amarela, e cheiros, cheiros de especiarias, perfumes de dose dupla depois de molhados. E a água morna tinha gosto de nata de leite.
E quando fervia pegava-se a concha e ia-se escaldando a farinha aos poucos, a farinha virava cama para o peixe cozido.
Nunca cheguei a ver a lua no poço, a tampa podre cobria tudo. Talvez a minguante se esgueirasse com facilidade, luna que se quiebra contra las tinieblas de la soledad das pedras redondas, mas diziam que água de lua na comida podia matar e com certeza matava mesmo, Deus o livre.
Minha mãe fazia frango ensopado de ouvido, punha a água uma vez, aos pouquinhos, e quando começava a chiar juntava mais uma caneca, e esperava chiar de novo.
Precisava grudar, sem queimar, no fundo da panela, três vezes. Depois cobria de água generosa que pouco a pouco se engrossava com as migalhas marrons.
E o mais interessante é que as receitas se esquecem sempre da água, mencionam tudo, do cabrito ao sal, as gotas de pimenta, a xícara de fubá, o tanto de couve picada, o tamanho das batatas, que podem ser pequenas, médias e grandes, mas se esquecem, imaginem de quê, sempre, se esquecem da água, receita nenhuma leva água, ai de nós se acreditarmos, como se...
E imaginem vocês se um dia eu tivesse morado na roça, e não vizinha do Empório Santa Luzia, a vida inteira. Com certeza iria ser dessas freiras trancadas, freiras de pedir água para Deus nas secas maiores.
Ah, e o jeito mais próprio de tirar água de um poço é de joelhos.

ninahort@uol.com.br



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