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Elogio à paixão
Jean-Luc Godard elabora reflexão sobre arte e amor em "Passion"
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Cadê a história? Não é de hoje
que os espectadores se perguntam por ela nos filmes de Godard. Mas também os produtores
-por que não? Em "Passion", os
próprios atores formulam com
clareza a questão que é o ponto de
honra de sua filmografia.
Antes de saber onde está a história, talvez fosse conveniente perguntar o que significa a história
para um filme. Ela é não só o estágio em que a literatura sobrepõe-se às imagens, como aquele que
rege o ilusionismo cinematográfico: a crença de que vemos algo
verdadeiro desfilar diante de nós.
Verdadeiro, não. Verossímil.
Algo que parece verdadeiro, mas
é apenas uma imitação. Como relógio de camelô. Quem sabe bem
distinguir os relógios de camelô
dos autênticos são os ladrões. E
com a arte, com as imagens, como
isso acontece?
"Passion" é, em um nível, a história dessas dúvidas. História não
escrita, mas vivida. Pois, como diz
um personagem no filme, histórias não se inventam, é preciso vivenciá-las. É também a história da
pintura. O que faz a beleza de uma
imagem? Não a violência, mas a
solidariedade entre as idéias, diz
alguém em dado momento.
O filme que está sendo feito em
"Passion" versa sobre a pintura,
ou sobre alguns quadros e pintores: Rembrandt, Delacroix, Goya.
Tem erros de composição, diz alguém. E um outro responde: procure pelos lábios dos personagens, não pela composição.
Onde está a história em Rembrandt? Ninguém pergunta. Mas
ela está lá. Estática. Não em seqüência, como no cinema, mas
nas relações entre cores, posturas,
brilhos, claros, escuros.
É a luta de Jerzy, o diretor do filme: reencontrar essa história em
imagens. Há, claro, alguma história: um caso de amor entre Jerzy e
Hanna, outros amores que começam e terminam. Porque esse é o
filme de amor de Godard. Há ainda a trabalhadora e o patrão -em
conflito. E há, ainda, a Polônia. De
onde vem Jerzy. Mas de onde
vem, sobretudo, o Solidariedade.
Cadê a história? Hoje ninguém
mais se interessa pelo Solidariedade. Mas foi esse sindicato quem
anunciou que o regime soviético
estava caindo aos pedaços.
Porque Godard é também um
documentarista de seu tempo.
Cada um de seus filmes reflete
profundamente sobre o tempo
presente. Presente, no caso, é
1982. Então, tudo bem de uma
vez: a reflexão sobre a beleza, ou
sobre o cinema, não exclui a política. Pois a arte não é um território
sagrado que paira acima das mazelas do mundo. Ela está nelas (lá
está Goya), o cinema mais que todas, pois é arte do momento.
Do momento e da eternidade,
também. Do agora e do sempre. É
arte de pegar o mundo desprevenido e descobrir as belezas que
podem produzir as associações
entre os objetos, entre as cores
(Godard, o cineasta das cores
mais lindas de todos os tempos),
as sombras e as luzes, o silêncio e
as palavras, a música e o vazio.
No meio disso, sobra uma história meio aos saltos, como sempre
em Godard. Não se pode ter tudo.
Às vezes é até auspicioso não ter
tudo. Por fim: pobre de quem tem
o dever de dar conta de tamanha,
de tão ampla beleza -melhor é
aceitar a derrota com dignidade.
Passion
Passion
Produção: França/Suíça, 1982
Direção: Jean-Luc Godard
Com: Isabelle Huppert, Hanna Schygulla
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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