São Paulo, sábado, 23 de julho de 2005

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CRÍTICA

Osesp faz rever a música de Villa-Lobos

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Glauber Rocha será para sempre o dono moral do segundo movimento das "Bachianas Brasileiras" nš 2, desde que empregou o inesquecível tema e a poderosa massa de acordes na abertura e no fim de seu filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964). A incongruência dos elementos -uma terra tão seca inundada pelo mar de música-, assim como a relativa incompatibilidade de gênios -em que pesem as contradições de um e outro-, só reforça a afinidade profunda de uma visão que descobre o Brasil de dentro para fora, como se afinal fosse possível enxergar e escutar o que se é.
Mas esse afinal ganha outra contundência agora, com o lançamento das "Bachianas" nšs 2, 3 e 4, tocadas pela Osesp, sob a regência de Roberto Minczuk. Assim como nos casos de Camargo Guarnieri e Francisco Mignone, já gravados pela orquestra, com sentido menos de simples recuperação do que de reinvenção mesmo, também Villa-Lobos (1887-1959) recebe aqui uma tradução que nos obriga a rever o quanto não se sabia que não se sabia sobre sua música.
Um clichê repetido há décadas decreta que o compositor nunca teve virtudes de orquestrador capazes de fazer justiça à sua invenção fabulosa. Mas quando se tem uma versão como essa as coisas mudam de figura: Villa-Lobos ressurge surpreendentemente como um dos grandes mestres da orquestração no século 20.
Pode-se pensar em três motivos para que isso não fosse de conhecimento universal: 1) as orquestras não eram capazes de tocar essa música em seus necessários termos; 2) o próprio compositor não era o melhor regente de si mesmo -como se percebe, por exemplo, escutando o recém-lançado disco com um registro de 1954 das "Bachianas" nš 7 e dos "Choros" nš 6, regidos por Villa com a Orquestra RIAS de Berlim (gravadora Kuarup): pessoalíssimo e cativante, tanto quanto desequilibrado; e 3) as condições técnicas de gravação simplesmente impossibilitavam que se guardasse essa arte tão original.
Faz toda diferença do mundo escutar as camadas de música sobrepostas umas às outras, controladas pelo maestro Minczuk até nos momentos de maior arroubo. E sentença anterior mereceria desdobramento: "toda diferença do mundo" seria um mote para se meditar sobre a arte de Villa-Lobos enquanto realização da cultura brasileira; e o "arroubo", nesse contexto, ganharia uma dimensão de experiência que ao mesmo tempo transcende e confirma nossas potencialidades.
É um mundo de música. Um lugar para onde se volta, agora, uma geografia sentimental que abarca desde o sertão glauberiano (com direito ao "Trenzinho do Caipira"), passando pelo Rio das "Bachianas" nš 3 -lindamente soladas pelo pianista Jean Louis Steuerman, em tons livres de nostalgia, sem perder o encantamento do passado- até a incrível flora das "Bachianas" nš 4, com seu mahleriano prelúdio e avassalador coral.
"Era um gênio mesmo", dizia Manuel Bandeira de Villa-Lobos. E completava: "o mais autêntico que já tivemos, se é que algum dia teremos outro". O próprio Bandeira seria um bom contra-exemplo; mas nem ele, nem nenhum grande espírito da terra, do passado ou do futuro, deixará de ser iluminado, em alguma medida, por essa música. Que diferença, então, ter uma gravação de referência, para se escutar o que foi, e o que será.


Villa-Lobos: Bachianas Brasileiras, nšs 2, 3, 4
    
Lançamento: Bis
Quanto: R$ 30, em média


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