São Paulo, Sexta-feira, 23 de Julho de 1999
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CINEMA "A HERDEIRA"
Filme, mesmo bom, reduz o livro de James

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Numa época carente de boas histórias para adultos, o cinema tem recorrido insistentemente à obra do norte-americano Henry James (1843-1916) em busca de inspiração e densidade.
Nos últimos três anos apareceram três adaptações (sem contar os telefilmes): "Retrato de uma Senhora", pela neo-zelandesa Jane Campion, "As Asas do Amor", pelo britânico Ian Softley, e, agora, "A Herdeira", que a polonesa Agnieszka Holland extraiu da novela jamesiana "Washington Square" (1880).
Mas James, mestre absoluto da narrativa, sobretudo por meio da manipulação hábil do ponto de vista, é um autor difícil de traduzir em cinema.
Tem-se a impressão, no geral, de que o que fica na tela é apenas a superfície de seus livros -o enredo, os personagens, o "tema"-, perdendo-se tudo o que está nas entrelinhas, nas sombras, silêncios e subentendidos.
"A Herdeira", visto em si mesmo, sem a comparação opressiva com o texto original, é um bom filme: intenso, envolvente, filmado com cuidado e elegância.
Agnieszka Holland mexeu pouco na história original. Na Nova York da segunda metade do século passado, Catherine (Jennifer Jason Leigh), filha do rico e eminente médico Austin Sloper (Albert Finney), é cortejada por um jovem pobre e aventureiro, Morris Towsend (Ben Chaplin).
Como o dr. Sloper considera a filha desprovida de encantos, deduz que o pretendente é um caça-dotes e decide rechaçá-lo, contra a vontade de Catherine.
Segue-se uma queda-de-braço entre Sloper e Towsend pela lealdade da moça. Nenhum dos dois a ama. O namorado quer usá-la para enriquecer; o pai, para afirmar seu orgulho autoritário.
Numa sociedade em que o papel da mulher era o de fazer filhos para a perpetuação do patrimônio da família, Catherine é um ser desprovido de sentido social, condenado à solidão absoluta.
Para os projetos arrivistas do namorado, ela é um mal necessário. Para o narcisismo autocrático do pai, chega a ser um estorvo.
Aqui começam as diferenças entre o filme e o livro. Tomada talvez de compaixão por sua personagem, Holland "modernizou" sua situação, acenando com a possibilidade de Catherine tornar-se útil pelo trabalho social.
No filme, apesar da excelente atuação de Albert Finney, os ambíguos e complexos sentimentos de Sloper com relação à filha são praticamente reduzidos a um só: o ódio, explicado redutoramente pelo fato de a mãe de Catherine ter morrido ao lhe dar à luz.
Além disso, o filme abre mão dos deslocamentos do ponto de vista que são tão importantes no livro. Com exceção de poucas cenas -como aquela em que Sloper visita a irmã de Towsend, tentando suborná-la-, o foco se prende o tempo todo a Catherine.
Com isso, perdem-se as maquinações entre Towsend e a tia frustrada e casamenteira de Catherine (a ótima Maggie Smith).
Mas a passagem do texto à tela não implica necessariamente apenas perda. Pode-se ganhar algo em troca.
Um exemplo é a cena em que, em viagem à Europa, o pai interpela a filha, no alto de uma montanha dos Alpes, exigindo que renuncie ao namorado.
No livro, há um admirável crescendo de tensão que chega ao horror quando Catherine se dá conta de que o desejo íntimo de seu pai é eliminá-la fisicamente.
No filme, a angústia da moça, confrontada com a terrível beleza do abismo, parece ser a da descoberta de sua insignificância diante das forças do mundo.
No livro, há a iminência do assassinato. No filme, a do suicídio. Em ambos os casos, é uma cena extraordinária.


Avaliação:    

Filme: A Herdeira Direção: Agnieszka Holland Com: Jennifer Jason Leigh, Albert Finney, Ben Chaplin, Maggie Smith Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes - Carmen Miranda e Market Place 3


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