São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 2008

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NINA HORTA

Cheiros da meninice


"Seus pães de queijo eram sólidos, oblongos, e não esféricos; a massa, amarela com casquilhas crocantes

MUITAS VEZES me sinto obrigada a transcrever as cartas de leitores como Hércules Domingues de Faria, de Mirassol (SP), por serem bem-escritas e fixarem um momento do passado:
"Já descrevi como encruzilhada de loucos o vilarejo em que nasci e quase cresci -continuo baixote aos 60 e tantos. Havia lá, para a rala população que não batia em mil almas, um punhado de tipos que iam do folclórico ao misterioso. Muitos suicidas, que as invectivas do padre Salim, turco ancho e bonachão, debitava à prática disseminada de um espiritismo sincrético. Todo mundo ia à igreja, parava na rua, persignava-se à hora da bênção do pão e do vinho, sempre anunciada por um belo repique de sinos. Mas essa mesma gente piedosa reunia-se em sessões onde se invocavam os irmãos del más allá.
Éramos cinco ou seis coroinhas, batininhas negras com sobrepeliz branca rendada e um cinto de cetim vermelho. O mais velho, de nome Orlando, tinha a honra de esparzir o incenso, turíbulo oscilando feito pêndulo dos relógios de parede alemães, sinais de abastança nas casas em que rebimbavam seus carrilhões tão bonitos.
Orlando era nosso instrutor, ensinava-nos os responsórios num latinório estropiado que conseguia apreender nas preleções do padre.
Este vomitava o fogo do inferno nas homilias, mas era bom sujeito. Fingia não perceber que lhe roubávamos o vinho santo, leniência que deixava fula a beata velhusca e murcha, dona Lia, zeladora da igreja.
Ela, sim, nos espinafrava para valer.
Minha São José da Barra, no sudoeste mineiro, no ponto em que o rio Sapucaí cai nos braços patriarcais do Grande, tinha também encantos. O mais arrebatador eram os cheiros. E desses, o mais penetrante vinha das quitandas. Eram os pães de queijo, as roscas de trança feito cabeleiras de moçoilas em flor, as brevidades, os pães-de-ló, a carne cozida e guardada na banha de porco, o peixe salgado com abóbora-moganga, bem parecida na textura e na cor com a japonesa cabochan.
Dona Ritinha era quitandeira de mão santa. Seus pães de queijo eram diferentes desse que rompeu fronteiras e hoje está aí por esse mundão de Deus, sobranceiro. Os dela eram sólidos, oblongos, e não esféricos, a massa amarela com casquilhas crocantes e amarronzadas.
As filhas e os filhos, quase todos pilotos de forno e fogão, nenhum de nós conhece a receita. Primeiro, porque dona Ritinha era avara desses segredos. Segundo, porque quando se dispunha a desvelá-los, falava grego antigo. Era um mucadim disso, um cheirinho daquilo outro, punhadim de farinha de munho, pitada de sal, coité de manteiga. Ora pois, dona Ritinha, com todo respeito, isso não era coisa que se fizesse.
Dona Augusta, vizinha, mulher miúda e lidadeira, era outra fada.
Brevidades e biscoitões de polvilho, estes sim muxibentos, ela os levava em grandes tabuleiros para vender na venda do Zeca. A peça de resistência, contudo, era a broa de amendoim. Divina. Custava 400 réis na venda, moedão de aço que tinha na cara uma lira, na coroa as barbas de d. Pedro 2º. Ou a calva de Vargas, não sei.
Dia desses, mano João me convocou a Olímpia. Tinha uma surpresa.
Fez-me sentar, pegou o bule de café e uma travessona coberta por um pano caprichado. Puxou-o e surgiu uma ruma de broas cor de ouro velho, salpicadas de calda de açúcar.
Comi em transe essas madeleines, de cambulhada com cheiros da meninice.
Contou-me que encontrara a fórmula de dona Augusta depois de muitas tentativas e de botar a perder quilos de ingredientes. Acho que não foi nada disso.
Tenho por certo que dona Augusta condoeu-se de seu esforço, encarnou-se nele e produziu aquelas maravilhas."

ninahorta@uol.com.br



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