São Paulo, terça-feira, 24 de janeiro de 2006

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FERNANDO BONASSI

Notas para uma televisão aberta bem burra mesmo

Uma televisão aberta bem burra mesmo começa com o fechamento a esmo de uma concessão, ou concussão, bem esperta. Alguém estará alerta para melhorar sua condição privada, quererá alguma coisa com a coisa pública ou precisará improvisar uma tal imagem lúdica da realidade que parecerá estar brincando quando, na verdade, estará é martelando em cheio as miragens de suas veleidades nos centros dos cérebros alheios...
São as necessidades imperiosas das hostes poderosas desses empresários da desinformação. Sua especialidade? A repetição antenada de certos ideais de civilização que enfim concretizarão a tão sonhada democracia de ocasião para as suas minorias. Claro que todos os demais cidadãos excluídos dessa transmissão "aos vivos" poderão espernear ou reclamar com os bispos, mas há tantos compromissos mixos, micos orçamentários, burocracias de cartórios hereditários, pressões de noticiários arranjados, pronomes pessoais e sobrenomes especiais que se entupirão as torres de reprodução, impedindo a contestação circunstancial e gerando a cadeia (ou penitenciária) nacional da estupidificação.
Os processos de discussão da democratização poderão durar anos a mais do que uma daquelas novelas muito ruins, ou aquelas mais ou menos boas o suficiente para serem esticadas até romperem a passividade das salas de jantares. No que diz respeito aos empreendedores dessas relações de poder, os agregados que ajudarão a eleger preservarão os seus direitos adquiridos, com os dinheiros dos subsídios e demais empréstimos camaradas. Do outro lado dessa "parceria" (ou palhaçada), uns negócios como esses criarão assim um telemercado de telecorrupção, em que até os teleguiados governos transitórios de oposição atirarão nos próprios pés, sendo devorados pela fé nos monstros que adularão e patrocinarão.
Como uma televisão bem burra, desde o início, agirá como tal, bem ou mal todo o processo de sua realização sofrerá a coerção imoral da indigência: os entrevistadores serão tão amigos dos entrevistados que as perguntas serão elogios recorrentes e as respostas conterão propostas indecentes; a chamada "grande história" será um tipo de memória antiga, difusa e confusa, com personagens tão patéticos de éticos que se tornarão caquéticos de fazer rir, de forma que os contadores de piadas sem graça confundirão a comédia desgraçada dos acontecimentos.
Uma televisão bem burra se comportará como uma espécie de assessoria de imprensa de quem é notícia, já que as novidades que a imprensa apura nem sempre são o que mais ajuda, ou compensa, para a prosperidade e para a recompensa dos anunciantes.
Em casos beligerantes, uma televisão bem burra usará carros blindados e repórteres embutidos, como insetos escondidos nos fundilhos dos uniformes militares.
Uma televisão bem burra será religiosa e fundamentalista, preferindo as danações masoquistas e doações esquisitas dos padres e pastores aos devidos recibos registrados dos impostos coletados. Uma televisão bem burra sempre chamará de censura a sua falta de idéias, preferirá o normal ao diferente, o idiota ao surpreendente e o oficial ao moral, mantendo uma casta de estrelas bacanas, empregadas para se coçarem e aparecerem a peso de ouro, enquanto os touros empregados como otários de temporada serão os encarregados de levar a facada de fazer tudo por um nada de salário.
Numa televisão bem burra, as pesquisas de opinião opinarão mais do que a questão que as pesquisas investigarão, as histórias de amor serão comuns e tão vulgares que não se diferenciarão os programas protocolares com atrizes das garotas meretrizes de programas espetaculares.
Uma televisão bem burra acabará com toda a influência contraditória, pois sua concepção masturbatória de comunicação incluirá a multiplicação da audiência com a sistemática subtração da concorrência. Uma televisão bem burra, mas bem burra mesmo, concentrará a sua ingerência na criação, desenvolvimento, distribuição e exibição, deixando uma legião de produtores independentes locais de prato na mão e com fama de marginais culturais, enganadores venais e vagabundos audiovisuais.
Só mesmo o tal do jornalismo de fundo investigativo será mais provocativo em sua ficção superficial, estimulando a consumação final de mais e mais atos de mesmice consensual.
Quanto à criancice, as crianças serão educadas nos intervalos, pelos reclames estonteantes dos publicitários deslumbrados.
Aliás, a coragem da encenação dos diretores só será proporcional à ousadia dos vendedores de programação, ou "executivos de marketing", como queiram. Numa televisão bem burra que se preza, os cenógrafos sempre serão mais importantes que os escritores, os escritores mais domesticados que os apresentadores, os apresentadores mais sensacionalistas que os estilistas, os estilistas mais influentes que os editores, os editores mais covardes que os pesquisadores e os maquiadores mais preparados que os atores.
Quanto aos telespectadores, cada um terá a televisão que merece, ou agüenta. Uma televisão aberta bem burra haverá de fazer do país a sua imagem e semelhança, nos livrando de todo o mal original da inteligência e da esperança no exercício da consciência para a verdadeira democracia.
Amém.


@ - fbonassi@uol.com.br

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