São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Hollywood: uma autópsia


Os indicados ao Oscar são prova da estagnação que Hollywood vem denunciando há anos


OSCAR: VOCÊS conhecem o jogo. Um filme vence, quatro filmes perdem. Aconteceu neste ano: "Quem Quer Ser um Milionário?" levou a estatueta dourada. Mas houve uma derrota suplementar: a derrota do cinema como arte revolucionária e vital, e não falo apenas do filme de Danny Boyle.
Segundo dizem, os cinco indicados ao Oscar de melhor filme representam a excelência que a indústria produziu em 2008. Eu assisti aos cinco, em cinco dias seguidos, para escrever texto crítico a respeito. Puro desperdício. Se o melhor do cinema anglo-americano está em "O Curioso Caso de Benjamin Button", "Milk - A Voz da Igualdade", "Frost/ Nixon", "Quem Quer Ser um Milionário?" e "O Leitor", por favor, preparem a tumba.
Exagero? Antes fosse. Primeiro que tudo, digo em minha defesa: nunca embarquei no desprezo tipicamente terceiro-mundista de olhar para Hollywood com escárnio. Longe disso: o cinema nasceu na Europa mas foi nos Estados Unidos que ele se ergueu como arte distinta, muitas vezes servida por diretores europeus.
E quando me falam nas "teorias de autor", que alegadamente se opõem ao reles comercialismo americano, lembro sempre que o conceito de "autor" é indissociável de Hollywood: de nomes como John Ford ou Howard Hawks, que os intelectuais de Paris teorizaram e, ironia das ironias, importaram de volta para os Estados Unidos.
Scorsese não existiria sem a influência da nouvelle vague. Mas a nouvelle vague não existiria sem o patrimônio fílmico que Hollywood produziu na primeira metade do século 20 e que se ofereceu à geração dos "Cahiers du Cinéma" como laboratório de estudo e subversão.
Tudo isso me parece agora distante e até deslocado. Os cinco filmes indicados ao Oscar são prova do cansaço e da estagnação que Hollywood vem denunciando há vários anos.
Claro que nem todos os filmes são comparáveis. "Quem Quer Ser um Milionário?", apesar da vitória, é provavelmente o pior de todos: uma história ridiculamente sentimental sobre um indiano das favelas que, em gesto de amor, vai a concurso televisivo para ganhar fortuna redentora. O problema não está na natureza fantasiosa da história: se assim fosse, seria preciso desqualificar uma parte importante do patrimônio cinematográfico, de Georges Méliès a Tim Burton. O problema está na histeria visual de Danny Boyle, que constrói uma narrativa sem uma única ideia de cinema a servi-la. O caso não é novo: "Trainspotting - Sem Limites" já anunciava ao mundo que, para Danny Boyle, o cinema é indistinguível de um videoclipe.
Exatamente o contrário do que sucede com "O Curioso Caso de Benjamin Button".
O filme, inspirado vagamente em conto prodigioso de Scott Fitzgerald, pretende oferecer-se como meditação sobre a irreversibilidade do tempo. Mas o que existia de excesso em Danny Boyle é agora ruminação sem sentido em Fincher: o seu Benjamin não é apenas desprovido de propósito; todo o filme, em sua autocomplacência visual, parece acompanhar o vazio da personagem. Não se trata de um mau filme. Trata-se de um não-filme.
Mas a verdadeira desgraça de Hollywood talvez não esteja em "Quem Quer Ser um Milionário?" ou "O Curioso Caso de Benjamin Button": obras falhadas fazem parte de qualquer atividade artística, certo? A desgraça maior talvez esteja em "Milk - A Voz da Igualdade", "Frost/ Nixon" e "O Leitor", três filmes medianos, e medianos por seu academismo vulgar.
"Milk" começa por surpreender exatamente por isso: Gus van Sant tem obras estimáveis no início da carreira, como "Drugstore Cowboy". Em "Milk", biopic sobre o primeiro político assumidamente homossexual a ser eleito para cargo público, Gus van Sant não consegue se distanciar do panfleto gay e de seus clichês ideológicos. Essa preguiça programática é ainda amplificada pelo convencionalismo formal que Gus van Sant imprime a "Milk".
Restam "Frost/Nixon" e "O Leitor", que talvez se salvassem do dilúvio se Ron Howard ou Stephen Daldry fossem, no verdadeiro sentido da palavra, "autores". Não são.
"Frost/Nixon" denuncia as suas origens teatrais, e denuncia da pior forma possível: ao tornar desnecessariamente caricatural o que apenas os palcos eram capazes de suportar. A composição de Frank Langella como Nixon prova-o de forma clara e, para mim, dolorosa.
"O Leitor" apenas prolonga a trivialidade de "Frost/Nixon": o poderoso livro de Bernhard Schlink sobre a relação amorosa entre uma antiga guarda nazista e um jovem estudante na Alemanha do pós-guerra não passa de uma composição desinspirada e televisiva. Disse "televisiva"? Corrijo. O Oscar deste ano confirma, pelo contrário, que a moderna ficção televisiva substituiu há muito, em inventividade e desafio, o papel visual e narrativo que o cinema teve durante um século.


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