São Paulo, terça-feira, 24 de abril de 2007

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BERNARDO CARVALHO

A ordem do horror

Ensaio do alemão Günther Anders é fundamental no que diz respeito à recepção da obra de Franz Kafka

O VEREDICTO de que "poucas teses sobre Kafka podem (...) ser provadas de maneira (...) inequívoca" já bastaria para justificar a forma que o alemão Günther Anders (1902-92) escolheu para o seu ensaio sobre o autor de "O Processo", assumindo ao mesmo tempo os papéis de promotor e de advogado de defesa do escritor. "Kafka: Pró e Contra" (reeditado pela Cosacnaify, na excelente tradução de Modesto Carone) é um texto fundamental no que diz respeito à recepção dessa obra construída sobre paradoxos -e depois da qual a literatura no Ocidente já não podia ser a mesma.
É sempre difícil e arriscado tentar compreender, no calor da hora, em meio a interpretações divergentes, todas as conseqüências de uma obra inaugural, antes do consenso e da chancela do cânone. Ainda mais quando essa obra é eminentemente híbrida, ambígua, contraditória e cheia de inversões. Kafka era um "fenômeno novo", um desconforto que a tradição teria preferido ignorar. Nesse pequeno ensaio, de 1946, Anders não apenas reconhece a dificuldade mas não recua diante do desafio. Pisa com segurança em terreno movediço. E assim termina por iluminar também o nosso presente.
Kafka reinventou a literatura no século 20. Não é possível escrever depois dele sem levá-lo em conta. E contudo é o que parece ocorrer hoje. Grande parte do mercado e da crítica continua promovendo a literatura como se Kafka (e, na sua esteira, Beckett e Thomas Bernhard) nunca tivesse existido.
Contrariando o lugar-comum que costuma classificá-lo como um escritor alegórico ou simbolista, criador de situações aberrantes e absurdas, Anders prefere definir o autor de "A Metamorfose" como um escritor realista: "Ele é feito um homem que esquia no cascalho, para provar com cambalhotas e arranhões, àqueles que pretendem que o cascalho é neve, que não se trata, realmente, de outra coisa senão cascalho". A ênfase no absurdo é a prova da realidade.
Lidos hoje, esses comentários só podem embaraçar aqueles que tentam contornar o que, desde Kafka, se tornou incontornável. Por exemplo: "Quanto mais alienante e impessoal o trabalho mecânico diário, mais urgente parece ser encontrar uma compensação no ato direto da "self-expression': na América de hoje há uma corrente educacional que recomenda a todos a "self-expression" (antes reservada aos artistas), de certo modo como hobby catártico. Aprende-se em classes superlotadas, mas expressa-se apenas aquilo que foi impingido, ou seja, os sentimentos ou estilos entregues à escola como mercadorias em série", escreve Anders.
Do pós-guerra para cá, só fizemos afundar nesse processo de institucionalização. A literatura como expressão é hoje moeda corrente nas universidades (e não só as americanas). Expressão de classe, de raça, de gênero etc. Além disso, vivemos a promessa desesperada da auto-expressão narcisista, como profissão. Qualquer estudante de artes plásticas sabe disso. E, se não sabe, acaba aprendendo à força, pelo esforço de se inserir no mercado.
A literatura de Kafka é o contrário da auto-expressão. A começar por um simples motivo: ela expõe a lógica desse mundo onde "quem não tem função definida não é mais digno de ter realidade", onde o homem foi "rebaixado a funções de coisa". Um mundo totalmente institucionalizado, onde já não há natureza, nem é possível crer na ilusão da imagem plena e romântica do artista, como no século 19. Um mundo mecanizado, tecnicizado, profissionalizante e alienante -o que leva Anders a fazer uma conexão surpreendente entre o escritor e Marx.
O que Kafka representa desse mundo, "diferenciando-se da literatura de crítica social (...), não é só o horror da desordem, mas também a ordem do horror". Então, o que resta para a arte diante de uma representação tão paralisante?
A resposta de Anders é inequívoca: resta o "pulo para fora da impotência", essa força que é a própria obra, por mais contraditória e paradoxal. Só assim é possível compreender também outros autores posteriores a Kafka, como Beckett e Bernhard. São obras extraordinárias, todas marcadas pelo humor, pelo riso que ecoa dentro do horror imobilizador, e que o contradizem, por sua simples existência.
Também apontam para uma percepção menos simplista da literatura, em oposição à leitura que a reduz a expressão direta de um sujeito irrefletido, rebaixado a objeto, transformado em mercadoria ou em mera representação de um lugar social, o que hoje acaba dando no mesmo.


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