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BERNARDO CARVALHO
A ordem do horror
Ensaio do alemão Günther Anders é fundamental no que diz respeito à recepção da obra de Franz Kafka
O VEREDICTO de que "poucas
teses sobre Kafka podem (...)
ser provadas de maneira (...)
inequívoca" já bastaria para justificar a forma que o alemão Günther
Anders (1902-92) escolheu para o
seu ensaio sobre o autor de "O Processo", assumindo ao mesmo tempo
os papéis de promotor e de advogado de defesa do escritor. "Kafka: Pró
e Contra" (reeditado pela Cosacnaify, na excelente tradução de Modesto Carone) é um texto fundamental no que diz respeito à recepção dessa obra construída sobre paradoxos -e depois da qual a literatura no Ocidente já não podia ser a
mesma.
É sempre difícil e arriscado tentar
compreender, no calor da hora, em
meio a interpretações divergentes,
todas as conseqüências de uma obra
inaugural, antes do consenso e da
chancela do cânone. Ainda mais
quando essa obra é eminentemente
híbrida, ambígua, contraditória e
cheia de inversões. Kafka era um
"fenômeno novo", um desconforto
que a tradição teria preferido ignorar. Nesse pequeno ensaio, de 1946,
Anders não apenas reconhece a dificuldade mas não recua diante do desafio. Pisa com segurança em terreno movediço. E assim termina por
iluminar também o nosso presente.
Kafka reinventou a literatura no
século 20. Não é possível escrever
depois dele sem levá-lo em conta. E
contudo é o que parece ocorrer hoje.
Grande parte do mercado e da crítica continua promovendo a literatura como se Kafka (e, na sua esteira,
Beckett e Thomas Bernhard) nunca
tivesse existido.
Contrariando o lugar-comum que
costuma classificá-lo como um escritor alegórico ou simbolista, criador de situações aberrantes e absurdas, Anders prefere definir o autor
de "A Metamorfose" como um escritor realista: "Ele é feito um homem
que esquia no cascalho, para provar
com cambalhotas e arranhões,
àqueles que pretendem que o cascalho é neve, que não se trata, realmente, de outra coisa senão cascalho". A ênfase no absurdo é a prova
da realidade.
Lidos hoje, esses comentários só
podem embaraçar aqueles que tentam contornar o que, desde Kafka,
se tornou incontornável. Por exemplo: "Quanto mais alienante e impessoal o trabalho mecânico diário,
mais urgente parece ser encontrar
uma compensação no ato direto da
"self-expression': na América de hoje há uma corrente educacional que
recomenda a todos a "self-expression" (antes reservada aos artistas),
de certo modo como hobby catártico. Aprende-se em classes superlotadas, mas expressa-se apenas aquilo que foi impingido, ou seja, os sentimentos ou estilos entregues à escola como mercadorias em série",
escreve Anders.
Do pós-guerra para cá, só fizemos
afundar nesse processo de institucionalização. A literatura como expressão é hoje moeda corrente nas
universidades (e não só as americanas). Expressão de classe, de raça, de
gênero etc. Além disso, vivemos a
promessa desesperada da auto-expressão narcisista, como profissão.
Qualquer estudante de artes plásticas sabe disso. E, se não sabe, acaba
aprendendo à força, pelo esforço de
se inserir no mercado.
A literatura de Kafka é o contrário
da auto-expressão. A começar por
um simples motivo: ela expõe a lógica desse mundo onde "quem não
tem função definida não é mais digno de ter realidade", onde o homem
foi "rebaixado a funções de coisa".
Um mundo totalmente institucionalizado, onde já não há natureza,
nem é possível crer na ilusão da imagem plena e romântica do artista,
como no século 19. Um mundo mecanizado, tecnicizado, profissionalizante e alienante -o que leva Anders a fazer uma conexão surpreendente entre o escritor e Marx.
O que Kafka representa desse
mundo, "diferenciando-se da literatura de crítica social (...), não é só o
horror da desordem, mas também a
ordem do horror". Então, o que resta para a arte diante de uma representação tão paralisante?
A resposta de Anders é inequívoca: resta o "pulo para fora da impotência", essa força que é a própria
obra, por mais contraditória e paradoxal. Só assim é possível compreender também outros autores
posteriores a Kafka, como Beckett e
Bernhard. São obras extraordinárias, todas marcadas pelo humor,
pelo riso que ecoa dentro do horror
imobilizador, e que o contradizem,
por sua simples existência.
Também apontam para uma percepção menos simplista da literatura, em oposição à leitura que a reduz
a expressão direta de um sujeito irrefletido, rebaixado a objeto, transformado em mercadoria ou em mera representação de um lugar social,
o que hoje acaba dando no mesmo.
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