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São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003

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MARCELO COELHO

O lado direito e o avesso de "Os Sertões"

No "Dicionário de Idéias Feitas" publicado pelo Mais! no domingo passado, senti falta das considerações relativas à "formação de nossa nacionalidade". A história do congraçamento das três raças, da nossa identidade mestiça, do sincretismo religioso, tudo isso continua a ser repetido de forma muito suspeita atualmente. Sempre que se fala em mestiçagem, fico pensando por que só há brancos no andar de cima.
"Canibalização", "antropofagia" e correlatos também correm o risco de se tornar palavras desprovidas de significado. Ou melhor, parecem ter invertido completamente seu sentido original. Hoje, quem imita o estrangeiro, quem adota sem nenhuma crítica qualquer novidade vinda de fora, simplesmente diz que está "canibalizando" o seu modelo, e fica tudo por isso mesmo.
Orgiástico, dionisíaco, oswaldiano: seria muito previsível e inexato descrever desse modo o último espetáculo de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina. Depois de "A Terra", Zé Celso adapta "O Homem" (primeira parte), de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha. Claro que vão aparecer em cena os índios, os portugueses, os negros, os mulatos e os cafuzos; claro que as alegrias da mestiçagem serão encenadas com grande sensualidade na peça e é claro também que o público será levado a participar da festa, deitando-se com os atores -uma outra mestiçagem- na grande rede em que se transforma o palco do Oficina.
Tudo ficaria bonito e simpático, mas bastante costumeiro, se se resumisse a isso. Na peça, a apologia da sexualidade tropical não exclui o seu oposto. O vaivém da rede cede lugar a cenas de estupro, e um ator cita, em altos brados, uma das terríveis frases de Euclydes da Cunha sobre a formação de nosso povo: "Deu-se o amplexo feroz do vencedor e do vencido".
Do mesmo modo, há passagens de grande doçura que se transfiguram de repente. Um grupo de retirantes, pedindo esmola, canta "nós somos os serenos"; no instante seguinte, com mínimos recursos de cena, tornam-se membros do PCC.
Essa instabilidade, essas viradas bruscas entre "bem" e "mal", entre otimismo e tragédia, surgem a todo momento no espetáculo, sem desnortear o espectador. A própria forma da peça parece imitar uma característica bem marcante de "Os Sertões". Trechos clássicos da obra de Euclydes da Cunha -a descrição do sertanejo como "Hércules-Quasímodo", o contraste entre a sua morosidade e a sua força, por exemplo- têm essa estrutura dualista, toda de antíteses.
A descrição da passividade do gado e do súbito, inexplicável, estouro da boiada é outra peça antológica do livro. Na montagem, José Celso organizou os dois trechos simetricamente, como se fossem espelho um do outro. Os atores fazem alternativamente papel de homem e gado; o que é, ao mesmo tempo, uma crítica e uma explicação da obra de Euclydes.
De certa forma, a peça lê "Os Sertões" do lado direito e do avesso ao mesmo tempo. Há um trecho do livro, intitulado "Parênteses Irritante", em que Euclydes da Cunha discute com os teóricos racistas do seu tempo. Seria o mestiço um "degenerado", um ser sem futuro, um aleijão etnológico? Euclydes discorda: com todos os problemas de sua constituição, o sertanejo é um "retrógrado", mas não um "degenerado". Como defesa do tipo sertanejo, não é grande coisa, mas é melhor do que diziam as teorias racistas de então.
José Celso transtorna todo o raciocínio. Faz com que as opiniões de um racista sejam declamadas por um negro de paletó e gravata. Um mulato atlético declama, em voz alta e na primeira pessoa, o trecho segundo o qual sua existência seria uma aberração. "Eu sou inviável", grita, em triunfo.
O desprezo racista, sem que se mude uma linha do texto, é lido com sinal trocado. Diríamos: é "canibalizado". Há antropofagia por toda parte na peça: não só quando se recria o episódio do bispo Sardinha (que, de vítima, passa igualmente a um estado de triunfo ao se comparar a Cristo), mas até no tratamento de pequenos aspectos do texto euclidiano.
"Os Sertões" está cheio de antíteses, em que um adjetivo parece quebrar as pernas do substantivo; são como que palavras-centauro, em que a referência erudita colide com a realidade miserável. Assim, o arraial de Canudos é chamado de "Tróia de taipa", o que ao mesmo tempo enaltece e diminui o palco da revolta. Na peça, mesmo essa expressão é canibalizada: são os índios, nus, em círculo, que gritam essa pérola como se fosse em tupi, aparentada a tapera e a tapuia, ao som do atabaque.
A peça sugere o tempo todo que a possibilidade de inverter, de recriar os sentidos do texto é, também, a possibilidade de transformar a sociedade. Os próprios personagens e figuras sociais representados em cena podem ser vistos como fatores de repressão ou de liberdade conforme o momento. Os jesuítas, reprimindo o paganismo, também terminam se rendendo a um espírito de festa e tolerância. Os bandeirantes, sanguinários caçadores de escravos, serão também ancestrais dos revoltosos de Canudos. Os portugueses, elementos de derrotismo e culto à fatalidade, entram de bom grado no deboche.
Tudo no espetáculo se transforma num piscar de olhos: os arraiais de Canudos são os acampamentos do MST, os jagunços são as quadrilhas do crime organizado, os padres que ameaçavam com o fogo do inferno são os pastores televisivos de hoje; tudo muda, porque nada mudou. Mas não há fatalismo nessa percepção. É como se aquilo que, em Euclydes da Cunha, era instabilidade atávica do brasileiro fosse traduzido por José Celso nas possibilidades, sempre adiadas, mas sempre presentes, de sua emancipação.


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