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MARCELO COELHO
O lado direito e o avesso de "Os Sertões"
No "Dicionário de Idéias Feitas" publicado pelo Mais!
no domingo passado, senti falta
das considerações relativas à "formação de nossa nacionalidade".
A história do congraçamento das
três raças, da nossa identidade
mestiça, do sincretismo religioso,
tudo isso continua a ser repetido
de forma muito suspeita atualmente. Sempre que se fala em
mestiçagem, fico pensando por
que só há brancos no andar de cima.
"Canibalização", "antropofagia" e correlatos também correm
o risco de se tornar palavras desprovidas de significado. Ou melhor, parecem ter invertido completamente seu sentido original.
Hoje, quem imita o estrangeiro,
quem adota sem nenhuma crítica
qualquer novidade vinda de fora,
simplesmente diz que está "canibalizando" o seu modelo, e fica
tudo por isso mesmo.
Orgiástico, dionisíaco, oswaldiano: seria muito previsível e
inexato descrever desse modo o
último espetáculo de José Celso
Martinez Corrêa, no Teatro Oficina. Depois de "A Terra", Zé Celso
adapta "O Homem" (primeira
parte), de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha. Claro que vão aparecer em cena os índios, os portugueses, os negros, os mulatos e os
cafuzos; claro que as alegrias da
mestiçagem serão encenadas com
grande sensualidade na peça e é
claro também que o público será
levado a participar da festa, deitando-se com os atores -uma
outra mestiçagem- na grande
rede em que se transforma o palco
do Oficina.
Tudo ficaria bonito e simpático,
mas bastante costumeiro, se se resumisse a isso. Na peça, a apologia da sexualidade tropical não
exclui o seu oposto. O vaivém da
rede cede lugar a cenas de estupro, e um ator cita, em altos brados, uma das terríveis frases de
Euclydes da Cunha sobre a formação de nosso povo: "Deu-se o
amplexo feroz do vencedor e do
vencido".
Do mesmo modo, há passagens
de grande doçura que se transfiguram de repente. Um grupo de
retirantes, pedindo esmola, canta
"nós somos os serenos"; no instante seguinte, com mínimos recursos de cena, tornam-se membros do PCC.
Essa instabilidade, essas viradas bruscas entre "bem" e "mal",
entre otimismo e tragédia, surgem a todo momento no espetáculo, sem desnortear o espectador. A própria forma da peça parece imitar uma característica
bem marcante de "Os Sertões".
Trechos clássicos da obra de
Euclydes da Cunha -a descrição
do sertanejo como "Hércules-Quasímodo", o contraste entre a
sua morosidade e a sua força, por
exemplo- têm essa estrutura
dualista, toda de antíteses.
A descrição da passividade do
gado e do súbito, inexplicável, estouro da boiada é outra peça antológica do livro. Na montagem,
José Celso organizou os dois trechos simetricamente, como se fossem espelho um do outro. Os atores fazem alternativamente papel
de homem e gado; o que é, ao
mesmo tempo, uma crítica e uma
explicação da obra de Euclydes.
De certa forma, a peça lê "Os
Sertões" do lado direito e do avesso ao mesmo tempo. Há um trecho do livro, intitulado "Parênteses Irritante", em que Euclydes da
Cunha discute com os teóricos racistas do seu tempo. Seria o mestiço um "degenerado", um ser sem
futuro, um aleijão etnológico?
Euclydes discorda: com todos os
problemas de sua constituição, o
sertanejo é um "retrógrado", mas
não um "degenerado". Como defesa do tipo sertanejo, não é grande coisa, mas é melhor do que diziam as teorias racistas de então.
José Celso transtorna todo o raciocínio. Faz com que as opiniões
de um racista sejam declamadas
por um negro de paletó e gravata.
Um mulato atlético declama, em
voz alta e na primeira pessoa, o
trecho segundo o qual sua existência seria uma aberração. "Eu
sou inviável", grita, em triunfo.
O desprezo racista, sem que se
mude uma linha do texto, é lido
com sinal trocado. Diríamos: é
"canibalizado". Há antropofagia
por toda parte na peça: não só
quando se recria o episódio do
bispo Sardinha (que, de vítima,
passa igualmente a um estado de
triunfo ao se comparar a Cristo),
mas até no tratamento de pequenos aspectos do texto euclidiano.
"Os Sertões" está cheio de antíteses, em que um adjetivo parece
quebrar as pernas do substantivo;
são como que palavras-centauro,
em que a referência erudita colide
com a realidade miserável. Assim, o arraial de Canudos é chamado de "Tróia de taipa", o que
ao mesmo tempo enaltece e diminui o palco da revolta. Na peça,
mesmo essa expressão é canibalizada: são os índios, nus, em círculo, que gritam essa pérola como se
fosse em tupi, aparentada a tapera e a tapuia, ao som do atabaque.
A peça sugere o tempo todo que
a possibilidade de inverter, de recriar os sentidos do texto é, também, a possibilidade de transformar a sociedade. Os próprios personagens e figuras sociais representados em cena podem ser vistos como fatores de repressão ou
de liberdade conforme o momento. Os jesuítas, reprimindo o paganismo, também terminam se
rendendo a um espírito de festa e
tolerância. Os bandeirantes, sanguinários caçadores de escravos,
serão também ancestrais dos revoltosos de Canudos. Os portugueses, elementos de derrotismo e
culto à fatalidade, entram de bom
grado no deboche.
Tudo no espetáculo se transforma num piscar de olhos: os arraiais de Canudos são os acampamentos do MST, os jagunços são
as quadrilhas do crime organizado, os padres que ameaçavam
com o fogo do inferno são os pastores televisivos de hoje; tudo muda, porque nada mudou. Mas
não há fatalismo nessa percepção.
É como se aquilo que, em Euclydes da Cunha, era instabilidade
atávica do brasileiro fosse traduzido por José Celso nas possibilidades, sempre adiadas, mas sempre presentes, de sua emancipação.
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