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São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003

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Na quitanda da baiana


Maria Bethânia dá novos passos independentes com lançamento simultâneo de disco e selo


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

A cantora Maria Bethânia, 57, consolida sua carreira independente, inaugurando agora o selo Quitanda, que passa a dirigir com a banqueira Kati Almeida Braga, dona da gravadora Biscoito Fino.
O lançamento número um de sua quitanda ("não é supermercado") é "Brasileirinho", álbum inédito da própria Bethânia. O número dois é a reedição de "Vozes da Purificação", da baiana Edith do Prato, 87, que saíra em 2002 em tiragem limitada.
Segundo Bethânia, "Brasileirinho" deveria ser um "brinde" de apresentação, com quatro ou cinco músicas -mas ela se empolgou e gravou um disco inteiro.
E já está em estúdio gravando seu próximo CD pela Biscoito Fino, só com músicas de Vinicius de Moraes (1913-80). Se sair antes do Natal, como ela deseja, será seu terceiro disco em 2003.
"Brasileirinho" foi feito de maneira muito simples", define Bethânia. "Se a Biscoito Fino já tem uma coisa muito nítida de ir só no que acredita e aposta, agora na Quitanda piorou", brinca.
Ela compara o trabalho independente com mais de 35 anos passados em grandes gravadoras. "Acabou meu contrato, a BMG não mostrou nenhum interesse em renovar. Estava infelicíssima lá, sem incentivo nenhum. Pensava em não fazer mais nada, nunca mais", afirma.
De lá para cá: "Agora é uma coisa assim que o professor não vai ver, não vai me encher o saco, não preciso de nota".
Para Bethânia, as diferenças de trabalhar deste modo aparecem no resultado artístico. "A sonoridade já é diferente. É um disco com três músicos, foi uma alegria para mim voltar a cantar com trio. Eu não fazia isso desde 71."
Os quatro gravaram as músicas ao vivo, juntos, "sentados no estúdio", hábito que nas práticas industriais recentes foi substituído pelas gravações separadas de cada instrumento ou cada segmento de canção.
"Tudo ficou tão solitário. Este disco veio de novo com um sabor de CPC, pobrinho", identifica a cantora, referindo-se aos universitários Centros Populares de Cultura dos anos 60, de que ela foi próxima no início de sua carreira, à época do show "Opinião" e de "Carcará" (65).
O repertório, temático, era inicialmente fechado em referências aos índios -o selo e o disco se chamariam "Tupi", mas o nome já pertencia à Rádio Tupi.
"Depois abrimos para o Brasil inteiro, com ajuda fundamental de Chico César na escolha do repertório", conta.
Com canções dedicadas aos santos Antônio, Jorge e João, "Brasileirinho" avança pela religiosidade, a exemplo de "Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu", que Bethânia lançou no início do ano.
Afirma que não é proposital. "Não sou uma cantora religiosa, sou uma cantora popular brasileira. É uma coisa do Nordeste, de onde venho. Não sei se por aqui há fé, não. Há alguma devoção? Bolsa de valores?", provoca.
Promete que sua Quitanda não será efêmera, como costuma ser regra entre artistas que fundam seus próprios selos. "Vai durar muito. Muita gente tem muita vontade de fazer algo com total liberdade, com garantia de qualidade", expõe.
Diz que não há nada definido por ora, mas que gostaria de gravar um disco de poesia falada por Ferreira Gullar. "Quero misturar teatro, música, poesia. É para isso que quero." "Na Quitanda pode tudo", completa Kati.
Segundo a cantora, o selo não terá um elenco definido ("não pode ter, nem eu sou do elenco"). Mas se coloca à disposição para viabilizar o lançamento de discos que já estejam prontos.
É o caso do CD de dona Edith do Prato, sua conterrânea de Santo Amaro da Purificação. Foi produzido por J. Velloso, sobrinho de Bethânia, que já co-produziu álbuns de Batatinha e Riachão, sambistas baianos históricos como dona Edith.
Usando prato e faca como instrumentos de ritmo, dona Edith havia aparecido primeiramente em "Araçá Azul" (73), de Caetano Veloso. Ela conta como começou a fazer música e comenta a demora em ter um disco seu:
"Era brincadeira de menina, eu com três amiguinhas. Comecei a tocar numa cuia. Tomei aquela impressão boa, peguei prato de louça e aí fui embora. Foi pena que o disco chegou muito tarde."
Semelhanças à parte, Bethânia afasta a comparação entre Edith e Clementina de Jesus (1901-87). "Dona Clementina era de um arco maior, mais completo. Ia do blues ao ponto de candomblé. Dona Edith é mais centrada no Recôncavo Baiano", diz, ressaltando que Edith é fã "mirabolante" de Clara Nunes (1943-83).

O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora Biscoito Fino

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