São Paulo, sábado, 24 de outubro de 2009

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Crítica/ "35 Doses de Rum"

Denis investiga relação de pai e filha

Cineasta francesa homenageia o japonês Yasujiro Ozu em "35 Doses de Rum", filme que é viagem plácida e melancólica

RICARDO CALIL
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Os filmes da francesa Claire Denis, como "Beau Travail" (1999), "Desejo e Obsessão" (2001) e "O Intruso" (2004), costumam ser viagens sensoriais vertiginosas, embaladas por imagens e músicas oníricas, personagens tomados por sentimentos exacerbados, narrativas fragmentadas e elípticas.
Seu novo filme, "35 Doses de Rum", é também uma viagem, mas plácida, agridoce, melancólica. Talvez seja seu trabalho mais acessível, de trama mais linear. Fácil? Jamais. Denis acredita profundamente em um cinema no qual os significados são formados por cada espectador, em vez de oferecidos prontos pelo diretor.
"35 Doses de Rum" é uma homenagem ao cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-1963), o que significa dizer que se mostra menos interessado nos grandes lances do destino do que nos pequenos ritos do cotidiano. Como em "Pai e Filha" (1949), o clássico de Ozu, o filme se centra na relação entre uma jovem mulher e seu pai viúvo; no lugar de Tóquio, os subúrbios de Paris.
Ali vivem o condutor de trem Lionel (Alex Descas) e sua filha Josephine (Mati Diop), que perderam respectivamente mulher e mãe há muitos anos. Em vez da família disfuncional de tantos filmes contemporâneos, temos aqui a ideia do lar como um abrigo para se proteger da solidão da metrópole, repleto de gestos singelos de afeto: o pai que compra uma panela japonesa para a filha, a filha que calça os chinelos do pai.
Como vizinhos e melhores amigos, eles têm a taxista Gabrielle (Nicole Dogue), ex-namorada de Lionel, e o órfão Noé (Gregoire Colin), apaixonado por Josephine. Os dois são como parentes queridos, mas demasiado próximos, que paradoxalmente ameaçam a harmonia do núcleo pai e filha. Pois o drama de Lionel e Josephine é justamente a consciência de que seu refúgio não é hermético, nem eterno. Como um personagem coadjuvante diz aos dois, "o mundo todo está com medo de sofrer".
Mesmo com a ação rarefeita, mesmo com o mínimo de diálogos, Denis consegue dar conta de um sentimento tão essencial e complexo quanto o amor entre pai e filha. Esse talento fica evidente numa cena antológica, em que Lionel, Josephine, Gabrielle e Noe dançam num bar ao som de "Night Shift", dos Commodores. Toda teia de amor, medo, desejo e ciúme -que une e imobiliza esses personagens- é revelada apenas com as trocas de olhares.
Denis fez um filme à altura da obra de Ozu e ainda mais belo que "Café Lumière" (2003), do taiwanês Hou Hsiao-Hsien, outra homenagem recente ao mestre japonês. Com seu novo trabalho, a diretora de 61 anos, ex-assistente de Wim Wenders, confirma-se como um dos nomes mais fascinantes do cinema contemporâneo. Não há nada como começar uma Mostra com uma obra-prima. E "35 Doses de Rum" é isso.


35 DOSES DE RUM

Quando: hoje, às 13h30, no Cinesesc, e em outros três dias
Avaliação: ótimo
Classificação: 14 anos




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