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COMIDA
NINA HORTA
Coca-Cola com cheiro de pequi
Continuando o artigo da
semana passada. Como posso estar falando da comida de rua
do Nepal se não conheço a do Belém do Pará? E como falar em trufas se o dinheiro não dá para a cesta?
Ora, esta, todos os jornais do
mundo têm artigos sobre bebida e
comida, desde a "Gazeta de Baldim" até o "Libération", por que
este jornal não teria? As pessoas
gostam de comer e de saber o que
as outras comem, qual o problema?
E o Brasil? Uma amiga me mandou pequis maduros, uns seis. E
adoro pequi, mas ando tão ocupada que guardei na geladeira. O
cheiro, penetrante, difuso, entrou
até nas garrafas fechadas de Coca-Cola (e não era guaraná), invadiu
a casa de brasilidade e de completa estranheza. Que diabo seria
aquilo?, perguntavam surpresos.
Bem o pequi é brasileiro, é barato, está ao alcance de todos. Mas,
adianta eu começar uma campanha pró-pequi? Não adianta, são
necessários motivos mais profundos, como um costume de infância, ou uma moda, ou necessidade, ou uma oportunista jogada de
marketing de algum médico de
dietas ou o excesso na colheita de
um plantador de pequis bem subvencionado, com patrocínio e
propaganda. Vejam o açaí, tão roxo e lindo, virou mania saudável
entre os jovens do sul depois de
séculos.
As pessoas que escrevem em
jornais, na seção de gastronomia,
são aqueles corajosos que ousam
ser tachados de alienados e abrem
a janelinha só quando o produto
está quase na panela, sem pensar
muito em nutrição, história e antropologia. Geralmente escrevem
sobre o prazer de comer.
Não acho também que se deva
falar só sobre coisas baratas porque o Brasil é pobre. Não, definitivamente não. É para falar de tudo.
Se os comentários forem somente sobre o básico, estaremos
decepcionando leitores interessados em cozinhar, curiosos sobre
outras terras e costumes, leitores
inveterados do assunto e aqueles
que acham que comida é civilização, cultura etc. e tal.
Fiz uma ponta num programa
de TV, e era a marcação mais cerrada do mundo para só mencionar coisas simples que todos pudessem comprar. Fora com a castanha portuguesa e com a Tailândia!!!!
E não é que num dia de castanha portuguesa eu vejo o simpático psicãonalista do programa de
mão dada a um cachorro, levando
o bicho ao dentista para lhe tirar o
tártaro dos dentes? Ah, não vale.
Dois pesos, duas medidas.
Vive-se sem moda, sem literatura, sem pintura e arquitetura, dizem alguns que sem amor, e até
sem cachorro, mas sem comida?
Comida é vital, básico, fundamental, assunto na boca de todos.
E, às vezes, temos medo de tocar
as profundas emoções que a comida evoca e a triste consciência
da possibilidade da fome.
Temos poucas tradições culturais relacionadas à comida se nos
compararmos com outros países
mais velhos, ou, por acaso, mais
fixados em gastronomia, como a
França. Não temos uma culinária
"imexível", que nos guie com
mão forte pelas gôndolas dos supermercados. Imagino que nossa
identidade ainda esteja em aberto, maleável, tensa entre os valores do passado e do futuro, acomodando-se do jeito que pode,
atravessando fases.
Até as fases da vida fazem variar
nosso alimento. Minha mãe já fez
pescada frita com purê de espinafre, tender com pêssegos em calda, eu fiz estrogonofe com batatinha palha, passei para a "nouvelle
cuisine", encantada. Minha filha
come arroz integral e comida orgânica, um dos meus filhos se esbalda com comida chinesa, pois a
mulher é chinesa, e o restaurante
do outro filho ganhou o título de
melhor hambúrguer do ano, eleito por uma revista conhecida.
Se num núcleo familiar mínimo, a variedade é tanta, imagine
por estes rincões afora. Como ser
só simplezinho e brasileiro, o que
é ser brasileiro e simplezinho a esta altura? O cronista de gastronomia só pode falar em arroz, feijão,
bife batido e salada de alface com
tomates? E os fornecedores, o dr.
Atkins, a comida crua, a moda de
Marrocos, o tombamento do acarajé e suas baianas, a dieta da lua e
do abacaxi, a quantidade de calorias, os carboidratos, o medo, o
medo implacável? A vaca, a galinha, o pato, a caça, o salmão, a garapa?
Os Estados Unidos têm aquela
coisa simples de pioneiros, alguns
bons especialistas em comida
americana, e o resto é o mundo. A
Austrália também. E assim acontece com outros países mais novos. Acho bom o país cuja língua
absorve as outras, vai se moldando noutra. Nós também sabemos
fazer isto, somos os reis da assimilação sem preconceitos.
E, ao meu ver, os chefs que pingam gotas de cupuaçu e açaí, e tititi e qüiproquó nos pratos, para
que pareça que a comida brasileira "pegou" de vez, estão enganados. Só será verdade quando o cupuaçu estiver lá no meio, no lugar
do bife, e as gotinhas circundantes
forem de foie gras. Se gostássemos mesmo dessas manchinhas
do prato, é claro que não acataríamos tamanha escassez, estaríamos comendo a coisa brasileira
de cumbuca funda, como feijoada
com farinha.
Me parece que estamos a caminho de uma identidade alimentar
talvez formada... pela falta de
identidade, pela mistura de etnias
e métodos.
É claro, vivemos implorando
que todos se preocupem com comida brasileira, principalmente
as universidades, mas quem somos nós, jornalistas das páginas
de gastronomia, para observar e
defender teses sobre a evolução
da galinha garnisé na parte inferior da bacia amazônica? Quisera
eu. Tudo é muito complicado.
@ - ninahort@uol.com.br
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