São Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 2005

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COMIDA

NINA HORTA


Coca-Cola com cheiro de pequi

Continuando o artigo da semana passada. Como posso estar falando da comida de rua do Nepal se não conheço a do Belém do Pará? E como falar em trufas se o dinheiro não dá para a cesta?
Ora, esta, todos os jornais do mundo têm artigos sobre bebida e comida, desde a "Gazeta de Baldim" até o "Libération", por que este jornal não teria? As pessoas gostam de comer e de saber o que as outras comem, qual o problema?
E o Brasil? Uma amiga me mandou pequis maduros, uns seis. E adoro pequi, mas ando tão ocupada que guardei na geladeira. O cheiro, penetrante, difuso, entrou até nas garrafas fechadas de Coca-Cola (e não era guaraná), invadiu a casa de brasilidade e de completa estranheza. Que diabo seria aquilo?, perguntavam surpresos.
Bem o pequi é brasileiro, é barato, está ao alcance de todos. Mas, adianta eu começar uma campanha pró-pequi? Não adianta, são necessários motivos mais profundos, como um costume de infância, ou uma moda, ou necessidade, ou uma oportunista jogada de marketing de algum médico de dietas ou o excesso na colheita de um plantador de pequis bem subvencionado, com patrocínio e propaganda. Vejam o açaí, tão roxo e lindo, virou mania saudável entre os jovens do sul depois de séculos.
As pessoas que escrevem em jornais, na seção de gastronomia, são aqueles corajosos que ousam ser tachados de alienados e abrem a janelinha só quando o produto está quase na panela, sem pensar muito em nutrição, história e antropologia. Geralmente escrevem sobre o prazer de comer.
Não acho também que se deva falar só sobre coisas baratas porque o Brasil é pobre. Não, definitivamente não. É para falar de tudo.
Se os comentários forem somente sobre o básico, estaremos decepcionando leitores interessados em cozinhar, curiosos sobre outras terras e costumes, leitores inveterados do assunto e aqueles que acham que comida é civilização, cultura etc. e tal.
Fiz uma ponta num programa de TV, e era a marcação mais cerrada do mundo para só mencionar coisas simples que todos pudessem comprar. Fora com a castanha portuguesa e com a Tailândia!!!!
E não é que num dia de castanha portuguesa eu vejo o simpático psicãonalista do programa de mão dada a um cachorro, levando o bicho ao dentista para lhe tirar o tártaro dos dentes? Ah, não vale. Dois pesos, duas medidas.
Vive-se sem moda, sem literatura, sem pintura e arquitetura, dizem alguns que sem amor, e até sem cachorro, mas sem comida? Comida é vital, básico, fundamental, assunto na boca de todos. E, às vezes, temos medo de tocar as profundas emoções que a comida evoca e a triste consciência da possibilidade da fome.
Temos poucas tradições culturais relacionadas à comida se nos compararmos com outros países mais velhos, ou, por acaso, mais fixados em gastronomia, como a França. Não temos uma culinária "imexível", que nos guie com mão forte pelas gôndolas dos supermercados. Imagino que nossa identidade ainda esteja em aberto, maleável, tensa entre os valores do passado e do futuro, acomodando-se do jeito que pode, atravessando fases.
Até as fases da vida fazem variar nosso alimento. Minha mãe já fez pescada frita com purê de espinafre, tender com pêssegos em calda, eu fiz estrogonofe com batatinha palha, passei para a "nouvelle cuisine", encantada. Minha filha come arroz integral e comida orgânica, um dos meus filhos se esbalda com comida chinesa, pois a mulher é chinesa, e o restaurante do outro filho ganhou o título de melhor hambúrguer do ano, eleito por uma revista conhecida.
Se num núcleo familiar mínimo, a variedade é tanta, imagine por estes rincões afora. Como ser só simplezinho e brasileiro, o que é ser brasileiro e simplezinho a esta altura? O cronista de gastronomia só pode falar em arroz, feijão, bife batido e salada de alface com tomates? E os fornecedores, o dr. Atkins, a comida crua, a moda de Marrocos, o tombamento do acarajé e suas baianas, a dieta da lua e do abacaxi, a quantidade de calorias, os carboidratos, o medo, o medo implacável? A vaca, a galinha, o pato, a caça, o salmão, a garapa?
Os Estados Unidos têm aquela coisa simples de pioneiros, alguns bons especialistas em comida americana, e o resto é o mundo. A Austrália também. E assim acontece com outros países mais novos. Acho bom o país cuja língua absorve as outras, vai se moldando noutra. Nós também sabemos fazer isto, somos os reis da assimilação sem preconceitos.
E, ao meu ver, os chefs que pingam gotas de cupuaçu e açaí, e tititi e qüiproquó nos pratos, para que pareça que a comida brasileira "pegou" de vez, estão enganados. Só será verdade quando o cupuaçu estiver lá no meio, no lugar do bife, e as gotinhas circundantes forem de foie gras. Se gostássemos mesmo dessas manchinhas do prato, é claro que não acataríamos tamanha escassez, estaríamos comendo a coisa brasileira de cumbuca funda, como feijoada com farinha.
Me parece que estamos a caminho de uma identidade alimentar talvez formada... pela falta de identidade, pela mistura de etnias e métodos.
É claro, vivemos implorando que todos se preocupem com comida brasileira, principalmente as universidades, mas quem somos nós, jornalistas das páginas de gastronomia, para observar e defender teses sobre a evolução da galinha garnisé na parte inferior da bacia amazônica? Quisera eu. Tudo é muito complicado.


@ - ninahort@uol.com.br

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