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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Tudo é ressentimento
Foi esse sentimento, e não as armas, Bush ou o "capitalismo selvagem", que envenenou a cabeça de Cho Seung-hui
UM PSICOPATA sul-coreano de
23 anos entrou numa universidade americana e abateu 32 pessoas. Nos dias seguintes,
um vídeo do criminoso passou nas
TVs do mundo inteiro e o mundo inteiro abriu a boca de espanto. Como
é possível conceder a Cho Seung-hui
os seus 15 minutos de fama?
Talvez eu esteja errado. Mas, no
massacre da Virgínia, o vídeo que o
criminoso gravou para a posteridade é a única coisa que se salva. Digo
mais: deveria ser obrigatório nos departamentos de história e ciência
política de universidades ocidentais.
Ele mostra, de forma impressiva e
brutal, o que Turgenev, Dostoiévski
e Conrad escreveram um século
atrás. Que tudo é ressentimento na
cabeça totalitária de um terrorista.
Os comportamentos do personagem são conhecidos. O ódio ao mundo. O ódio à sua própria condição
marginal numa sociedade competitiva e livre. A vontade de destruição
radical, como se essa destruição fosse redentora para ele. E a declaração
final de que foram os outros, e não o
próprio, que o obrigaram a gestos
extremos. Foi o ressentimento, e
não as armas, Bush ou o "capitalismo selvagem", que envenenou a cabeça de um ser humano.
Aconteceu no passado, e Roger
Scruton, um dos mais notáveis pensadores contemporâneos, explicou
o fenômeno no ensaio "The Totalitarian Temptation" (a tentação totalitária), agora publicado no livro "A
Political Philosophy" (uma filosofia
política, Continuum, 214 págs.). Retomando Nietzsche e a noção de
"ressentiment", embora recusando
o significado que o alemão lhe atribuía como sentimento próprio da
"moralidade cristã", Scruton explica
como os movimentos totalitários,
em política, não se limitam à sua dimensão "ideológica" ou "sistêmica".
O totalitarismo, que para Scruton é
anterior ao século 20 e emerge com
a Revolução Francesa, Robespierre
e o Terror, começa com seres humanos concretos que transportam para
a arena pública os seus próprios ressentimentos privados.
A tentação totalitária é a tentação
dos ressentidos. De todos aqueles
que encaram o poder não só como
forma de transformação do mundo
mas sobretudo como instrumento
de destruição de um mundo de que
se sentem excluídos. Por isso, ao
chegarem ao poder, na França de
1789, na Rússia de 1917 ou na Alemanha de 1933, os ressentidos procuram destruir instituições que conferiam poder aos outros. A lei, a propriedade privada, a religião e qualquer outra fonte de poder "intermédio" entre o Estado e os indivíduos.
Mas o ressentido não procura só
destruir qualquer princípio de autoridade que se oponha à sua própria.
Ele entende que não há destruição
sem inimigo, e a tentação totalitária
exige um grupo capaz de expiar todas as falhas. A aristocracia para os
jacobinos. Os burgueses e os kulaks
para os comunistas soviéticos. Os judeus para os nazistas. E, numa escala menor e individual, os "garotos ricos" para Cho Seung-hui, o monstrinho solitário que deplorava nos outros o "materialismo", o "deboche" e
a indiferença perante ele. Olhar e escutar o criminoso da Virgínia é uma
lição preciosa para entender dois séculos de política e ressentimento.
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