São Paulo, quinta-feira, 25 de maio de 2006

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NINA HORTA

Uma história de cozinha tagarela

Vou contar como era a comida para dar a idéia de casamento com tudo a que se tem direito

"CUIDADO COM o degrau, meninas!", avisei mais de duas vezes. Traiçoeiro, o degrau, escondido entre o esplendor das mesas postas, das luzes, dos cristais, das tulipas roxas.
Viro-me à chegada do primeiro convidado para consolar a produtora em ais e uis porque o bolo da noiva está menos roxo do que o combinado.
"Esqueça, bolo prateado com pintinhas roxas talvez seja até mais bonito do que roxo inteiro." Na verdade, não entendo nada de bolos roxos, acho bonito e só, mas é que a festa está começando e não adianta chorar sobre o leite derramado.
Corro para os bastidores com as famosas últimas palavras ainda na boca, tropeço no degrau maldito e aterrisso sobre a mesa mais próxima, ensopando a toalha roxa com a água dos vasos de tulipas roxas, quebrando os cristais, "tlim, tlim, tlim", como se a Globo anunciasse ao mundo o casamento.
"Minha vida por um secador de cabelos e uma extensão bem comprida!"
Sanado o problema vergonhoso, e os joelhos escalavrados, vou contar como era a comida que foi saindo da cozinha só para dar água na boca e uma idéia de um casamento com tudo a que se tem direito, uma história de cozinha tagarela, como diria o Revel.
(Por escrito não é a mesma coisa, você tem que achar palavras para representar o apetitoso.)
Em mesas compridas, os garçons cortavam o presunto cru em fatias vermelhas finísssimas, transparentes, com gordurinha branca e tudo. Do lado, um gazpacho gelado, em taças, para refrescar. Mais longe, ostras carnudas, sendo abertas. (Nem todo mundo gosta. Quem gosta faz uma pirâmide alta, pega um limão e vai sozinho para um canto aproveitar o privilégio.) Peixes inteiros marinados, ceviches picantes.
Copeiras diligentes passam amuse gueules, essas coisinhas de enganar o estômago e abrir a fome, para aqueles que ainda não se animaram a levantar e ir à caça. São cones de foie mergulhados em pistache, cestinhas de papoula recheadas (do penúltimo livro do Thomas Keller) e o sucesso honesto de sempre: pastéis bem brasileiros, pousados em cestinhas de linho. Agora chegam as saladas. (Fomos até a fazenda Ervas Finas, perto de Atibaia, para ver colher as verduras orvalhadas, rúculas do tamanho de uma unha, todos os tipos de coração de alface, mostardazinhas picantes, pequenices amargas e doces, como o milho e a cenoura, tudo mini, mini, mini, acabando de se fazer.)
Camarões grandes! (Quando se fala de algumas coisas há que se abusar dos diminutivos, sopinhas, folhinhas, cestinhas, mas no caso dos camarões, tanto na cozinha como traduzido em letras, tem que ser grande e fresco.) São só assustados na frigideira e ficam lá, brilhando em especiarias.
Desde as primeiras horas da manhã assavam-se cordeiros nos roletes, em fogo de lenha muito lento, e depois de nove horas desmanchavam-se na boca.
Servidos com molho de hortelã, que faz toda a diferença. E ainda havia uma ave dourada e picante, coberta por um molho escuro de castanhas portuguesas.
Grande folia culinária. Diria que teve mais e mais, o que não cabe nas prescrições do manual. Pois casaram e dançaram; comeram e beberam.
E não se pode esquecer da sobremesa, os sorvetes, os inocentes docinhos tão brasileiros e as barrigas de freira, hóstias translúcidas, portuguesas com certeza, e a mesa de chocolates lúdica, em barras estampadas, cravejadas de amêndoas e avelãs, a serem quebradas com martelinhos pelos próprios convidados.
Na madrugada, para arejar a cabeça dos que iam pegar a estrada, sopa cremosa com receita dada pelo pai da noiva.
E que os noivos comilões sejam felizes para sempre!


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