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NINA HORTA
Uma história de cozinha tagarela
Vou contar como era a
comida para dar a idéia
de casamento com tudo
a que se tem direito
"CUIDADO COM o degrau,
meninas!", avisei mais de
duas vezes. Traiçoeiro, o
degrau, escondido entre o esplendor das mesas postas, das luzes, dos
cristais, das tulipas roxas.
Viro-me à chegada do primeiro
convidado para consolar a produtora em ais e uis porque o bolo da noiva está menos roxo do que o combinado.
"Esqueça, bolo prateado com pintinhas roxas talvez seja até mais bonito do que roxo inteiro." Na verdade, não entendo nada de bolos roxos, acho bonito e só, mas é que a
festa está começando e não adianta
chorar sobre o leite derramado.
Corro para os bastidores com as
famosas últimas palavras ainda na
boca, tropeço no degrau maldito e
aterrisso sobre a mesa mais próxima, ensopando a toalha roxa com a
água dos vasos de tulipas roxas,
quebrando os cristais, "tlim, tlim,
tlim", como se a Globo anunciasse
ao mundo o casamento.
"Minha vida por um secador de
cabelos e uma extensão bem comprida!"
Sanado o problema vergonhoso, e
os joelhos escalavrados, vou contar
como era a comida que foi saindo
da cozinha só para dar água na boca
e uma idéia de um casamento com
tudo a que se tem direito, uma história de cozinha tagarela, como diria o Revel.
(Por escrito não é a mesma coisa,
você tem que achar palavras para
representar o apetitoso.)
Em mesas compridas, os garçons
cortavam o presunto cru em fatias
vermelhas finísssimas, transparentes, com gordurinha branca e tudo.
Do lado, um gazpacho gelado, em
taças, para refrescar. Mais longe,
ostras carnudas, sendo abertas.
(Nem todo mundo gosta. Quem
gosta faz uma pirâmide alta, pega
um limão e vai sozinho para um
canto aproveitar o privilégio.) Peixes inteiros marinados, ceviches picantes.
Copeiras diligentes passam amuse gueules, essas coisinhas de enganar o estômago e abrir a fome, para
aqueles que ainda não se animaram
a levantar e ir à caça. São cones de
foie mergulhados em pistache, cestinhas de papoula recheadas (do penúltimo livro do Thomas Keller) e o
sucesso honesto de sempre: pastéis
bem brasileiros, pousados em cestinhas de linho. Agora chegam as saladas. (Fomos até a fazenda Ervas
Finas, perto de Atibaia, para ver colher as verduras orvalhadas, rúculas
do tamanho de uma unha, todos os
tipos de coração de alface, mostardazinhas picantes, pequenices
amargas e doces, como o milho e a
cenoura, tudo mini, mini, mini, acabando de se fazer.)
Camarões grandes! (Quando se
fala de algumas coisas há que se
abusar dos diminutivos, sopinhas,
folhinhas, cestinhas, mas no caso
dos camarões, tanto na cozinha como traduzido em letras, tem que
ser grande e fresco.) São só assustados na frigideira e ficam lá, brilhando em especiarias.
Desde as primeiras horas da manhã assavam-se cordeiros nos roletes, em fogo de lenha muito lento, e
depois de nove horas desmanchavam-se na boca.
Servidos com molho de hortelã,
que faz toda a diferença. E ainda havia uma ave dourada e picante, coberta por um molho escuro de castanhas portuguesas.
Grande folia culinária. Diria que
teve mais e mais, o que não cabe nas
prescrições do manual. Pois casaram e dançaram; comeram e beberam.
E não se pode esquecer da sobremesa, os sorvetes, os inocentes docinhos tão brasileiros e as barrigas
de freira, hóstias translúcidas, portuguesas com certeza, e a mesa de
chocolates lúdica, em barras estampadas, cravejadas de amêndoas e
avelãs, a serem quebradas com
martelinhos pelos próprios convidados.
Na madrugada, para arejar a cabeça dos que iam pegar a estrada,
sopa cremosa com receita dada pelo pai da noiva.
E que os noivos comilões sejam
felizes para sempre!
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