São Paulo, quinta-feira, 25 de junho de 2009

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NINA HORTA

A receita certa para o aluno certo


A professora não pode se comportar como a autoridade máxima, mas como alguém vulnerável


COMENTEI, NA semana passada, o livro "O Artífice", um ensaio de Richard Sennet (que não é um livro de gastronomia), mas não cheguei nas receitas, ou instruções expressivas. As receitas ao pé do fogo, de mãe para filha, parecem as mais eficazes. Já com um manual de receitas não se pode discutir nem se sente os cheiros e os barulhinhos, e a textura na linguagem escrita. E quem já não passou pelas agruras de montar uma reles prateleira através de instruções escritas?
Vejamos uma receita para cortar um frango, sucinta e boa. "Cortar a ligação de cada omoplata na articulação da asa e, segurando-a firmemente com o polegar e o indicador da mão esquerda, arrancá-la com a outra mão. Solte a carne do esterno, usando a ponta da faca ao longo da crista e soltando-a lateralmente com as pontas dos dedos. Novamente com a ponta dos dedos, afrouxe todo o perímetro das costelas e, finalmente do ponto mais alto do esterno, corte a cartilagem que sustém a pele, tomando o cuidado de não perfurá-la." O autor tentou. A receita tem verbos fáceis, de ação. Cortar, soltar, afrouxar, perfurar.
Sabemos obedecer essas ordens em outro contexto, mas não no contexto da galinha. O professor está preocupado somente com a galinha, não se preocupa com a ignorância do aluno. O segundo exemplo é Julia Child, que tem total empatia com o leitor. Como Julia foi uma das primeiras mulheres a se valer da televisão, inventou os closes nas explicações mais difíceis. Fez a mesma coisa nos livros, com ilustrações dos procedimentos complicados. O que ela está tentando fazer? Entrar na pele do aluno, e não na pele do frango.
O aluno não tem a experiência de cozinha que ela tem. Ela se lembra dela própria, gauche, querendo cozinhar comida francesa e depois tentando ensinar estas comidas para os americanos. A professora não pode se comportar como a autoridade máxima, mas como alguém vulnerável, sujeita ao erro, compreendendo a insegurança de quem faz alguma coisa pela primeira vez. O que ensina tem que esquecer o amontoado de sua experiência anterior e começar da inocência primeira.
A terceira professora é Elizabeth David. Suas receitas são claras, simples. Nem se importa muito com pesos e medidas e horários. Procura transmitir a técnica evocando o lugar e seu contexto cultural. Começaria com um chef olhando suas galinhas, pegando uma na mão, chamando-a pelo nome, imaginando o que fazer com ela, apalpando o papo, alisando as penas, pensando quais ingredientes acompanhariam melhor sua velha amiga. É uma história que você lê antes de cozinhar, larga o livro e vai para o fogão. O que aconteceu nesse aprendizado?
A David contou uma história, com começo (ingredientes), meio (a mistura dos ingredientes e o cozimento) e fim (comer o que foi preparado). Esse é o caminho que ela deseja que o aluno percorra, do jeito dele. No livro "O Artífice", o autor dá uma receita que arrancou de sua professora persa e que funciona por meio de analogias. Vou escrever do meu jeito, mais fácil de entender.
Dê um banho na sua criança (galinha), preparando-a para o novo modo de vida que se aproxima. (Desosse) Trate-a com carinho, vista nela a roupa dourada (doure antes de assar) e alimente-a com a comida que ela gosta, mas sem exagero (recheio). Ela deve estar com frio, leve-a para um lugar quente (forno), mas não excessivamente quente, pois as crianças têm a pele delicada que pode se romper e a criança pode até morrer! (Temperatura e o perigo de queimar). Cubra-a de joias, lembre-se, você vai mostrar aos outros sua pequena. (Molhos e apresentação.) O mundo está cheio de receitas.
É prestar atenção para escolher as que mais combinam com nosso modo de ser.

ninahorta@uol.com.br


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