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CARLOS HEITOR CONY
A grande lição do Moniz Vianna
Alguns leitores continuam
me perguntando se afinal eu
sou contra ou a favor de Lula e de
seu governo. Em crônica da semana passada, na página 2, tentando explicar, acho que piorei a coisa, pois me referi, indevidamente,
é certo, ao discurso de Marco Antônio no funeral de César. Hoje
desço de nível e pretensão, vou
lembrar a lição que aprendi
quando fazia parte do Conselho
de Cinema, presidido pelo Moniz
Viana, que era, ao lado de Paulo
Emílio Salles Gomes, um dos
grandes gurus da crítica cinematográfica.
No conselho formado por redatores e intelectuais que formavam
a turma do "Correio da Manhã",
havia gente de peso, como José Lino Grünewald, Sérgio Augusto,
Salvyano Cavalcanti de Paiva,
Maurício Gomes de Leite e Walter Lima Júnior, estes dois últimos
também cineastas. Nosso divisor
de águas era Godard, que naquele tempo, início dos anos 60, fazia
uma produção maciça, dois filmes por ano. Os líderes das duas
facções eram o Moniz Vianna,
um fordiano compacto, e o Zé Lino, que com Maurício Gomes Leite achavam Godard o ponto de
não-retorno da arte universal, depois dele, o dilúvio.
Entrou no circuito um dos filmes dele, não lembro qual, mas
era um Godard -dizia-se isso como se diz: é um Leonardo, um
Beethoven, um Goethe. Na véspera de sair a cotação dos membros
do conselho, o Valério Andrade,
que era o secretário, passou a lista
dos filmes exibidos, e a turma logo se posicionou contra e a favor
do autor de "Acossado". Os godardianos deram a cotação máxima, cinco estrelas. Os não-godardianos cravaram a bolinha
preta, que significava a rejeição
total, definitiva. O último a votar
era o Moniz Vianna, crítico oficial do "Correio" e, naquela época, exercendo as funções de diretor de Redação.
Moniz olhou a lista, contou as
bolinhas pretas e as cinco estrelas,
dava empate. Sendo ele o líder
absoluto da facção anti-Godard,
era certo que meteria sua bolinha
preta na lista e com isso desclassificaria o filme. Moniz é um dos
baianos mais inteligentes que conheci. Olhou os votos, sobretudo
os que deram bolinha preta, e disse entre os dentes: "Imbecis! Não é
assim que se faz!". E cravou no filme de Godard uma estrelinha solitária, que significava tudo o que
ele queria dizer: nem obra-prima
nem lixo. Apenas um filme banal,
medíocre e sem valor como expressão de cinema e de cultura.
Não foi entendido pelos godardianos nem pelos antigodardianos. O que era aquilo? Ele, o árbitro final, o virulento adversário
dos filmes experimentais, teria a
obrigação de meter sua bolinha
preta, repudiando uma obra confusa e vazia -o tempo daria razão a ele. Moniz explicou:
- Esse pessoal que deu bola
preta não sabe de nada. Bola preta é a negação total, equivale ao
"não vi e não gostei", é apenas
um radicalismo infanto-juvenil,
em oposição ao radicalismo contrário, o que deu cotação máxima
para o mesmo filme. Numa hora
dessas, a gente deve ser cruel, matar devagar, destruir de mansinho, soprando a ferida. Dando
uma estrela apenas, demonstro
tudo o que o filme é: uma bosta.
Mas uma bosta avaliada, meditada, produto de uma análise não
emocional, mas fria, técnica.
Nunca esqueci essa lição. Daí
que, voltando ao assunto desta
crônica, acho que a aprovação e a
rejeição de Lula e de seu governo,
guardadas as proporções, é a mesma do Conselho de Cinema a respeito da obra de Jean-Luc Godard. Todos os que se manifestam
acabam distribuindo bolas pretas
e cinco estrelas de acordo com o
gosto, a paixão ou o interesse de
cada um. Aprova-se tudo ou tudo
se condena, doloroso primarismo
que atualmente divide a opinião
pública nacional.
Adaptando a lição do Moniz
Vianna ao caso, devemos evitar o
radicalismo emocional ou tático e
ficar na objetividade, que terá o
mérito de irritar tanto a corrente
do contra como a corrente do a
favor. Não quero dizer que se deva dar uma só estrelinha para Lula, embora o seu partido tenha como logomarca uma estrela única
e bastante.
Mas, sempre que me pedem
uma opinião sobre o assunto, eu
nunca fico pelas beiras, pela negação brutal ou pela aprovação
boçal.
Em algumas coisas, daria até
quatro estrelas para ele, mas a
média seria mesmo a estrelinha
única, que significa um espaço
aberto para posterior avaliação.
E vamos à consideração final.
Tanto no cinema como na vida
pública, esse tipo de conselho, de
bolinhas pretas e estrelas, é de um
ridículo atroz. Nem o cinema
nem, muito menos, a vida nacional dependem desse tipo de cotação. Vão em frente, com avanços
e recuos, mas seguindo um roteiro
próprio, que absorve coordenadas
concretas em termos de objetivos
e orçamentos. Ora, direis, e as pesquisas de opinião que de certo
modo fazem um papel equivalente ao dos Conselhos de Cinema?
A aprovação ou rejeição obtida
pelos coeficientes das pesquisas
faz, realmente, o mesmo papel,
expressa o que 56% de fulanos
pensam contra 44% de sicranos
que pensam de outro modo. Num
e noutro caso, não altera a essência do filme ou do governo, Eles
serão bons ou maus apesar das
bolas pretas ou das estrelas em
profusão.
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