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São Paulo, sexta-feira, 25 de julho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A grande lição do Moniz Vianna

Alguns leitores continuam me perguntando se afinal eu sou contra ou a favor de Lula e de seu governo. Em crônica da semana passada, na página 2, tentando explicar, acho que piorei a coisa, pois me referi, indevidamente, é certo, ao discurso de Marco Antônio no funeral de César. Hoje desço de nível e pretensão, vou lembrar a lição que aprendi quando fazia parte do Conselho de Cinema, presidido pelo Moniz Viana, que era, ao lado de Paulo Emílio Salles Gomes, um dos grandes gurus da crítica cinematográfica.
No conselho formado por redatores e intelectuais que formavam a turma do "Correio da Manhã", havia gente de peso, como José Lino Grünewald, Sérgio Augusto, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Maurício Gomes de Leite e Walter Lima Júnior, estes dois últimos também cineastas. Nosso divisor de águas era Godard, que naquele tempo, início dos anos 60, fazia uma produção maciça, dois filmes por ano. Os líderes das duas facções eram o Moniz Vianna, um fordiano compacto, e o Zé Lino, que com Maurício Gomes Leite achavam Godard o ponto de não-retorno da arte universal, depois dele, o dilúvio.
Entrou no circuito um dos filmes dele, não lembro qual, mas era um Godard -dizia-se isso como se diz: é um Leonardo, um Beethoven, um Goethe. Na véspera de sair a cotação dos membros do conselho, o Valério Andrade, que era o secretário, passou a lista dos filmes exibidos, e a turma logo se posicionou contra e a favor do autor de "Acossado". Os godardianos deram a cotação máxima, cinco estrelas. Os não-godardianos cravaram a bolinha preta, que significava a rejeição total, definitiva. O último a votar era o Moniz Vianna, crítico oficial do "Correio" e, naquela época, exercendo as funções de diretor de Redação.
Moniz olhou a lista, contou as bolinhas pretas e as cinco estrelas, dava empate. Sendo ele o líder absoluto da facção anti-Godard, era certo que meteria sua bolinha preta na lista e com isso desclassificaria o filme. Moniz é um dos baianos mais inteligentes que conheci. Olhou os votos, sobretudo os que deram bolinha preta, e disse entre os dentes: "Imbecis! Não é assim que se faz!". E cravou no filme de Godard uma estrelinha solitária, que significava tudo o que ele queria dizer: nem obra-prima nem lixo. Apenas um filme banal, medíocre e sem valor como expressão de cinema e de cultura.
Não foi entendido pelos godardianos nem pelos antigodardianos. O que era aquilo? Ele, o árbitro final, o virulento adversário dos filmes experimentais, teria a obrigação de meter sua bolinha preta, repudiando uma obra confusa e vazia -o tempo daria razão a ele. Moniz explicou:
- Esse pessoal que deu bola preta não sabe de nada. Bola preta é a negação total, equivale ao "não vi e não gostei", é apenas um radicalismo infanto-juvenil, em oposição ao radicalismo contrário, o que deu cotação máxima para o mesmo filme. Numa hora dessas, a gente deve ser cruel, matar devagar, destruir de mansinho, soprando a ferida. Dando uma estrela apenas, demonstro tudo o que o filme é: uma bosta. Mas uma bosta avaliada, meditada, produto de uma análise não emocional, mas fria, técnica.
Nunca esqueci essa lição. Daí que, voltando ao assunto desta crônica, acho que a aprovação e a rejeição de Lula e de seu governo, guardadas as proporções, é a mesma do Conselho de Cinema a respeito da obra de Jean-Luc Godard. Todos os que se manifestam acabam distribuindo bolas pretas e cinco estrelas de acordo com o gosto, a paixão ou o interesse de cada um. Aprova-se tudo ou tudo se condena, doloroso primarismo que atualmente divide a opinião pública nacional.
Adaptando a lição do Moniz Vianna ao caso, devemos evitar o radicalismo emocional ou tático e ficar na objetividade, que terá o mérito de irritar tanto a corrente do contra como a corrente do a favor. Não quero dizer que se deva dar uma só estrelinha para Lula, embora o seu partido tenha como logomarca uma estrela única e bastante.
Mas, sempre que me pedem uma opinião sobre o assunto, eu nunca fico pelas beiras, pela negação brutal ou pela aprovação boçal.
Em algumas coisas, daria até quatro estrelas para ele, mas a média seria mesmo a estrelinha única, que significa um espaço aberto para posterior avaliação.
E vamos à consideração final. Tanto no cinema como na vida pública, esse tipo de conselho, de bolinhas pretas e estrelas, é de um ridículo atroz. Nem o cinema nem, muito menos, a vida nacional dependem desse tipo de cotação. Vão em frente, com avanços e recuos, mas seguindo um roteiro próprio, que absorve coordenadas concretas em termos de objetivos e orçamentos. Ora, direis, e as pesquisas de opinião que de certo modo fazem um papel equivalente ao dos Conselhos de Cinema?
A aprovação ou rejeição obtida pelos coeficientes das pesquisas faz, realmente, o mesmo papel, expressa o que 56% de fulanos pensam contra 44% de sicranos que pensam de outro modo. Num e noutro caso, não altera a essência do filme ou do governo, Eles serão bons ou maus apesar das bolas pretas ou das estrelas em profusão.


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