São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA
Feijoada corre o risco de ficar desnaturada

COLUNISTA DA FOLHA

Quantos brasileiros não torcem o nariz diante de um nariz de porco avistado no caldeirão da feijoada? Muitos; a depender de boa parte do público, e da opção de muitos restaurantes, a feijoada corre o risco de virar um prato desnaturado.
Entre os pratos brasileiros, a feijoada é um vencedor. Já era consumida nas Minas Gerais do século 17, é um prato tão carioca quanto paulista, tem suas versões locais em cada canto (no Nordeste, leva legumes e feijão marrom); ganhou status nacional e vem resistindo à invasão européia, ao fim da escravidão, à febre de comidas light. E resistiu também ao estranho hábito da classe média brasileira, que detesta miúdos de qualquer bicho e parece viciada em carnes nobres.
Uma injustiça com a feijoada e uma contradição com a situação do país. Enquanto os ricos europeus se comprazem comendo lesmas, miolos, tripas e rins de vários animais, aos quais dão tanta importância quanto aos filés de cordeiro ou peitos de faisão, no Brasil impera um curioso preconceito. O do país pobre que só come filé mignon (em não tendo, prefere-se comer ovo e ficar sem carne a aceitar miúdos pretensamente suspeitos).
No caso da feijoada, a recusa das partes menos nobres do porco é um crime contra o prato e o paladar. Contra o prato porque, quando um restaurante ou o cliente opta pela "feijoada de branco" (como a chamo), aquela onde só entra lombinho, bisteca e linguiça portuguesa, está se perpetrando um atentado à história da nossa culinária. Um crime de memória.
Que atenta igualmente contra o paladar. Pé, orelha, rabo de porco -que, aliás, os refinados franceses adoram comer, em diferentes pratos de caríssimos restaurantes- não são apenas memórias da suposta pobreza dos escravos, aos quais seriam legadas as partes "ruins" dos animais. São, na verdade, iguarias que compõem o conjunto de sabores de qualquer feijoada que se preze -e assim eram no passado, já que os senhores portugueses, amantes das tripas ou das linguiças de sangue, não teriam porque enjeitar os componentes do grande cozido de feijão preparado na colônia.
Os componentes gelatinosos das "porcarias do porco" são fundamentais para dotar de untuosidade e de aroma o feijão. O caldo mais encorpado, de consistência aveludada, que uma boa feijoada precisa ter, deve muito aos injustiçados pertences de porco.
Há lugares decentes que, diante do preconceito existente na clientela, não os excluem do cardápio, apenas separam pudicamente os tachos onde são servidos os ingredientes párias.
Mas o comedor advertido de feijoada sabe que, naquela cumbuca, deverá buscar não somente pés, rabos e quejandos, como também o caldo onde eles estão imersos -pois esse será um caldo mais encorpado, mais denso, mais saboroso, a ser misturado com o feijão.
Ao lado dos restaurantes que escondem da clientela as partes "feias" do prato nacional, curiosamente os restaurantes mais refinados, cujos proprietários têm uma visão mais ampla da gastronomia (não somente do Brasil, mas do mundo), têm preservado a integridade dos ingredientes, da mesma forma que os endereços mais tradicionais.
É verdade que, para adequar-se às exigências do nosso tempo, os melhores restaurantes procuram tornar a feijoada mais leve e digestiva. Faz parte do moderno inventário cozinhar as carnes separadamente, em água que será depois descartada com o excesso de gordura. Algo diferente do velho processo, mais rudimentar, de misturar todos os componentes para cozinhar com o feijão.
Assim fazem, por exemplo, casas como Massimo e La Tambouille -redutos de cozinha européia onde a feijoada se impôs. É interessante também o sistema das churrascarias, que grelham bistecas e linguiças no carvão (as carnes ficam menos gordurosas do que quando fritas).
A feijoada realmente completa é mais do que uma refeição: é um ritual de prazer e bem viver. Requer guarnições especiais como: tempo disponível, rede, um longo charuto. Nem sempre isso é possível num dia de semana: daí ser compreensível que se torne o prato mais leve. Mas entre isso e desnaturá-lo, roubando-lhe a essência (que está mais nas carnes menos nobres do porco do que nas outras), vai uma grande e inaceitável distância. (JM)


Texto Anterior: Rádio: Empresa lança rádio por assinatura
Próximo Texto: Onde comer
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.