|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Feijoada corre o risco de ficar desnaturada
COLUNISTA DA FOLHA
Quantos brasileiros não torcem o nariz diante de um
nariz de porco avistado no caldeirão da feijoada? Muitos; a depender de boa parte do público, e da
opção de muitos restaurantes, a
feijoada corre o risco de virar um
prato desnaturado.
Entre os pratos brasileiros, a feijoada é um vencedor. Já era consumida nas Minas Gerais do século 17, é um prato tão carioca quanto paulista, tem suas versões locais em cada canto (no Nordeste,
leva legumes e feijão marrom);
ganhou status nacional e vem resistindo à invasão européia, ao
fim da escravidão, à febre de comidas light. E resistiu também ao
estranho hábito da classe média
brasileira, que detesta miúdos de
qualquer bicho e parece viciada
em carnes nobres.
Uma injustiça com a feijoada e
uma contradição com a situação
do país. Enquanto os ricos europeus se comprazem comendo lesmas, miolos, tripas e rins de vários
animais, aos quais dão tanta importância quanto aos filés de cordeiro ou peitos de faisão, no Brasil
impera um curioso preconceito.
O do país pobre que só come filé
mignon (em não tendo, prefere-se comer ovo e ficar sem carne a
aceitar miúdos pretensamente
suspeitos).
No caso da feijoada, a recusa das
partes menos nobres do porco é
um crime contra o prato e o paladar. Contra o prato porque, quando um restaurante ou o cliente
opta pela "feijoada de branco"
(como a chamo), aquela onde só
entra lombinho, bisteca e linguiça
portuguesa, está se perpetrando
um atentado à história da nossa
culinária. Um crime de memória.
Que atenta igualmente contra o
paladar. Pé, orelha, rabo de porco
-que, aliás, os refinados franceses adoram comer, em diferentes
pratos de caríssimos restaurantes- não são apenas memórias
da suposta pobreza dos escravos,
aos quais seriam legadas as partes
"ruins" dos animais. São, na verdade, iguarias que compõem o
conjunto de sabores de qualquer
feijoada que se preze -e assim
eram no passado, já que os senhores portugueses, amantes das tripas ou das linguiças de sangue,
não teriam porque enjeitar os
componentes do grande cozido
de feijão preparado na colônia.
Os componentes gelatinosos
das "porcarias do porco" são fundamentais para dotar de untuosidade e de aroma o feijão. O caldo
mais encorpado, de consistência
aveludada, que uma boa feijoada
precisa ter, deve muito aos injustiçados pertences de porco.
Há lugares decentes que, diante
do preconceito existente na clientela, não os excluem do cardápio,
apenas separam pudicamente os
tachos onde são servidos os ingredientes párias.
Mas o comedor advertido de
feijoada sabe que, naquela cumbuca, deverá buscar não somente
pés, rabos e quejandos, como
também o caldo onde eles estão
imersos -pois esse será um caldo mais encorpado, mais denso,
mais saboroso, a ser misturado
com o feijão.
Ao lado dos restaurantes que escondem da clientela as partes
"feias" do prato nacional, curiosamente os restaurantes mais refinados, cujos proprietários têm
uma visão mais ampla da gastronomia (não somente do Brasil,
mas do mundo), têm preservado
a integridade dos ingredientes, da
mesma forma que os endereços
mais tradicionais.
É verdade que, para adequar-se
às exigências do nosso tempo, os
melhores restaurantes procuram
tornar a feijoada mais leve e digestiva. Faz parte do moderno inventário cozinhar as carnes separadamente, em água que será depois
descartada com o excesso de gordura. Algo diferente do velho processo, mais rudimentar, de misturar todos os componentes para
cozinhar com o feijão.
Assim fazem, por exemplo, casas como Massimo e La Tambouille -redutos de cozinha européia
onde a feijoada se impôs. É interessante também o sistema das
churrascarias, que grelham bistecas e linguiças no carvão (as carnes ficam menos gordurosas do
que quando fritas).
A feijoada realmente completa é
mais do que uma refeição: é um
ritual de prazer e bem viver. Requer guarnições especiais como:
tempo disponível, rede, um longo
charuto. Nem sempre isso é possível num dia de semana: daí ser
compreensível que se torne o prato mais leve. Mas entre isso e desnaturá-lo, roubando-lhe a essência (que está mais nas carnes menos nobres do porco do que nas
outras), vai uma grande e inaceitável distância.
(JM)
Texto Anterior: Rádio: Empresa lança rádio por assinatura Próximo Texto: Onde comer Índice
|