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São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 2003

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NELSON ASCHER

Haroldo de Campos (1929-2003)

Haroldo de Campos é agora sua obra. A presença humana transitória que, centrifugamente, emitia sem cessar sinais e signos de toda espécie, mas que, centripetamente, devido à sua força gravitacional, os mantinha na própria órbita, tornou-se uma imensa nebulosa cujos contornos levará tempo para começarmos a entrever.
Esta existe hoje nos graus mais diversos de condensação, que vão da materialidade de livros à quase abstração desse ou daquele recurso estilístico que, reduzido através de uma sucessão de mãos menos hábeis a maneirismo, sobressai fosforescente, sob a forma de influência, em textos alheios.
Sua clareza pode ser tão concentrada quanto a memória de amigos capazes de recordar não só o que dizia mas também como o dizia, numa voz que moldava ondas sonoras com a elegância de um calígrafo oriental, ou se apresentar dispersa pela infinitude de idéias que, propagadas de boca em boca, ao chegarem às de gente que lhes ignorava a origem haviam se metamorfoseado num clima de opinião.
Graças ao exorbitante das dimensões, ninguém conseguirá reivindicar esse legado inteiro. Críticos que desejem de fato servir à cultura usarão seus ensaios menos como mapas do que como bússolas que, em vez do norte magnético, apontam para onde há trabalho a fazer. Tradutores, contagiados por seu entusiasmo e pela inspiração que lhe permitia equacionar os mais impossíveis problemas interidiomáticos (e ele provou que a tradução requer tanta imaginação quanto a poesia), redescobrirão, primeiro, que não existem poemas intraduzíveis, apenas tradutores ineptos ou preguiçosos, e, segundo, que traduzir é preciso.
Poetas, se forem inteligentes, pilharão ou saquearão avidamente (como aconselhava T.S. Eliot) seus poemas e, caso tenham muita sorte, produzirão antes do fim talvez 10% do que ele criou. Acima de tudo, porém, é a seus leitores, presentes, futuros e potenciais, que Haroldo pertence doravante. Ele, como dissera Auden em sua elegia sobre a morte de Yeats, tornou-se seus admiradores. Mesmo aqueles que ainda não sabem disso.
Se bem que, até certo ponto, já fosse em vida seus admiradores e, por muito que os surpreenda, seus detratores e adversários igualmente, não há como negar que entre o poeta e seus leitores interpunha-se sobretudo o próprio Haroldo ou, mais precisamente, sua missão.
Haroldo via-se, foi visto e, de fato, era um missionário. Enfatizar que a variedade e amplitude de seus interesses faziam dele uma personalidade do Renascimento pareceria banal caso se evocassem, em seguida, os principais suspeitos, a saber, arquitetos que eram poetas que eram pintores que eram cientistas: Leonardo, Michelângelo. Acontece que seu modelo, apropriadamente para um escritor do novo mundo, encontrava-se antes entre os doutíssimos jesuítas que, durante a era das descobertas, embrenhando-se em climas e lugares estranhos, descobriram, estudaram e deram a conhecer outra China, Índia e Japão, outro México e África.
Os homens renascentistas aos quais o poeta se assemelhava eram os cartógrafos e linguistas, os lexicógrafos e antropólogos "avant la lettre" que catalogaram e preservaram culturas como a náuatle (dos aztecas), elaboraram gramáticas como a do tupi-guarani, apresentaram a ciência ocidental, em chinês, aos chineses: Bernardino de Sahagún, José de Anchieta, Matteo Ricci.
A missão que assumiu era a poesia, algo que, no seu caso, equivalia a uma metonímia (a parte pelo todo) da cultura. Sua revelação consistia no seguinte: a poesia, ou seja, a cultura é interessante e divertida; não se trata de uma curiosidade exótica ou de um penduricalho a ser ostentado, porque, se tem uma função, é a de tornar a vida não mais longa (tarefa da medicina), mas, sim, mais densa, interconectada, digna.
Que seu didatismo minucioso e paciente fosse às vezes tomado por doutrinação ou catequese era de esperar. Quem, no entanto, o tenha visto numa sala de aula, deixando um transbordante público de olhos arregalados enquanto levava as cabeças mais duras e céticas a compreenderem e, milagre dos milagres, apreciarem deleitadas os versos difíceis de um autor temido, sabe que ele estava em busca de parceiros, não de seguidores.
Assim, de todos os Haroldos que coexistiam, foi o crítico que se consagrou como a presença pública por excelência. Embora sua crítica, desdenhando em geral julgar, absolver e condenar obras e autores, preferisse dedicar-se à renovação, mais que da poesia (que se renova a toda hora por si só), do gosto pela poesia, a sua própria terminou inevitavelmente sendo tratada como parte integrante e militante de tal missão.
E uma tradição onde o número de poetas notáveis sempre superou o de críticos importantes ajudou a sublinhar esse aspecto de seu trabalho. Em particular numa época quando seja o que se escrevia, seja como se escrevia no Brasil (e não somente em versos) degradavam-se sem trégua, ele insistia em provar, com seu exemplo, que a irrelevância nacional não é um destino decretado de antemão.
A falta que o poeta fará pode ser compensada apenas pelo legado que deixou, legado em cujo centro está sua obra poética. Se, de acordo com o teórico prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831), a guerra era a continuação da política por outros meios, a poesia é, à sua maneira, a extensão rumo ao futuro da vida dos poetas.
No caso de Haroldo, ela consiste também numa cápsula do tempo que porta em si o que sua missão tinha de mais vital. A melhor homenagem que podemos prestar-lhe é lê-la.


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