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NELSON ASCHER
Haroldo de Campos (1929-2003)
Haroldo de Campos é agora sua obra. A presença humana transitória que, centrifugamente, emitia sem cessar sinais e
signos de toda espécie, mas que,
centripetamente, devido à sua
força gravitacional, os mantinha
na própria órbita, tornou-se uma
imensa nebulosa cujos contornos
levará tempo para começarmos a
entrever.
Esta existe hoje nos graus mais
diversos de condensação, que vão
da materialidade de livros à quase abstração desse ou daquele recurso estilístico que, reduzido
através de uma sucessão de mãos
menos hábeis a maneirismo, sobressai fosforescente, sob a forma
de influência, em textos alheios.
Sua clareza pode ser tão concentrada quanto a memória de
amigos capazes de recordar não
só o que dizia mas também como
o dizia, numa voz que moldava
ondas sonoras com a elegância de
um calígrafo oriental, ou se apresentar dispersa pela infinitude de
idéias que, propagadas de boca
em boca, ao chegarem às de gente
que lhes ignorava a origem haviam se metamorfoseado num
clima de opinião.
Graças ao exorbitante das dimensões, ninguém conseguirá
reivindicar esse legado inteiro.
Críticos que desejem de fato servir
à cultura usarão seus ensaios menos como mapas do que como
bússolas que, em vez do norte
magnético, apontam para onde
há trabalho a fazer. Tradutores,
contagiados por seu entusiasmo e
pela inspiração que lhe permitia
equacionar os mais impossíveis
problemas interidiomáticos (e ele
provou que a tradução requer
tanta imaginação quanto a poesia), redescobrirão, primeiro, que
não existem poemas intraduzíveis, apenas tradutores ineptos ou
preguiçosos, e, segundo, que traduzir é preciso.
Poetas, se forem inteligentes, pilharão ou saquearão avidamente
(como aconselhava T.S. Eliot)
seus poemas e, caso tenham muita sorte, produzirão antes do fim
talvez 10% do que ele criou. Acima de tudo, porém, é a seus leitores, presentes, futuros e potenciais, que Haroldo pertence doravante. Ele, como dissera Auden
em sua elegia sobre a morte de
Yeats, tornou-se seus admiradores. Mesmo aqueles que ainda
não sabem disso.
Se bem que, até certo ponto, já
fosse em vida seus admiradores e,
por muito que os surpreenda, seus
detratores e adversários igualmente, não há como negar que
entre o poeta e seus leitores interpunha-se sobretudo o próprio
Haroldo ou, mais precisamente,
sua missão.
Haroldo via-se, foi visto e, de fato, era um missionário. Enfatizar
que a variedade e amplitude de
seus interesses faziam dele uma
personalidade do Renascimento
pareceria banal caso se evocassem, em seguida, os principais
suspeitos, a saber, arquitetos que
eram poetas que eram pintores
que eram cientistas: Leonardo,
Michelângelo. Acontece que seu
modelo, apropriadamente para
um escritor do novo mundo, encontrava-se antes entre os doutíssimos jesuítas que, durante a era
das descobertas, embrenhando-se
em climas e lugares estranhos,
descobriram, estudaram e deram
a conhecer outra China, Índia e
Japão, outro México e África.
Os homens renascentistas aos
quais o poeta se assemelhava
eram os cartógrafos e linguistas,
os lexicógrafos e antropólogos
"avant la lettre" que catalogaram
e preservaram culturas como a
náuatle (dos aztecas), elaboraram gramáticas como a do tupi-guarani, apresentaram a ciência
ocidental, em chinês, aos chineses:
Bernardino de Sahagún, José de
Anchieta, Matteo Ricci.
A missão que assumiu era a
poesia, algo que, no seu caso,
equivalia a uma metonímia (a
parte pelo todo) da cultura. Sua
revelação consistia no seguinte: a
poesia, ou seja, a cultura é interessante e divertida; não se trata
de uma curiosidade exótica ou de
um penduricalho a ser ostentado,
porque, se tem uma função, é a de
tornar a vida não mais longa (tarefa da medicina), mas, sim, mais
densa, interconectada, digna.
Que seu didatismo minucioso e
paciente fosse às vezes tomado
por doutrinação ou catequese era
de esperar. Quem, no entanto, o
tenha visto numa sala de aula,
deixando um transbordante público de olhos arregalados enquanto levava as cabeças mais
duras e céticas a compreenderem
e, milagre dos milagres, apreciarem deleitadas os versos difíceis
de um autor temido, sabe que ele
estava em busca de parceiros, não
de seguidores.
Assim, de todos os Haroldos que
coexistiam, foi o crítico que se
consagrou como a presença pública por excelência. Embora sua
crítica, desdenhando em geral julgar, absolver e condenar obras e
autores, preferisse dedicar-se à renovação, mais que da poesia (que
se renova a toda hora por si só),
do gosto pela poesia, a sua própria terminou inevitavelmente
sendo tratada como parte integrante e militante de tal missão.
E uma tradição onde o número
de poetas notáveis sempre superou o de críticos importantes ajudou a sublinhar esse aspecto de
seu trabalho. Em particular numa época quando seja o que se escrevia, seja como se escrevia no
Brasil (e não somente em versos)
degradavam-se sem trégua, ele
insistia em provar, com seu exemplo, que a irrelevância nacional
não é um destino decretado de
antemão.
A falta que o poeta fará pode ser
compensada apenas pelo legado
que deixou, legado em cujo centro
está sua obra poética. Se, de acordo com o teórico prussiano Carl
von Clausewitz (1780-1831), a
guerra era a continuação da política por outros meios, a poesia é, à
sua maneira, a extensão rumo ao
futuro da vida dos poetas.
No caso de Haroldo, ela consiste
também numa cápsula do tempo
que porta em si o que sua missão
tinha de mais vital. A melhor homenagem que podemos prestar-lhe é lê-la.
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